Opinião: The Pearl Thief serve como prequela a Code Name Verity, essa pérola literária que cinco anos depois, ainda me faz cantar as suas virtudes. (Tive oportunidade de rever o seu brilhantismo relendo partes do livro num domingo de manhã, depois de acabar este livro.) Contudo, funciona perfeitamente como a sua própria história isolada - não é necessário ler um após o outro, se bem que diria que a vida de qualquer leitor seria bem melhor por ter lido o Verity.
O livro decorre no Verão de 1938, e foca-se na personagem Julie, que conhecemos do Verity. Julie é parte da nobreza escocesa (o pai é um conde, o avô materno também), mas a sua deslocação a Strathfearn, onde se localiza a casa ancestral da família materna, não é por uma boa razão: a propriedade está a ser vendida, bem como o seu conteúdo, e a submeter-se a obras para ser transformada numa escola privada.
(Num processo muito semelhante ao aludido em Downton Abbey, calculo, a propriedade deixou de dar lucro e começou a acumular dívidas, exacerbadas com a doença do avô e as contas médicas acumuladas antes de falecer.)
Só que, mal chega, Julie mete-se logo em sarilhos: está junto ao rio da propriedade, observando um homem com um comportamento estranho, quando leva uma pancada forte na cabeça. Acorda três dias depois, sem saber o que se passou, mas o homem que observava está desaparecido. Este é portanto no essencial um mistério ao estilo cozy com um toque vintage e juvenil de Nancy Drew.
Não se pense, no entanto, que é só isso que o livro é. Tem múltiplos outros pontos de interesse: para já, a exploração da personagem Julie. Podemos ver vislumbres da pessoa que ela se vai tornar. Esta Julie é inexperiente, e ainda está a aprender a lidar com as suas capacidades de dar conversa e manipular pessoas, de usar os seus encantos femininos.
No Verity a Julie é extraordinária neste aspecto; aqui, ela vai fazendo as coisas tentativamente, aprendendo com as suas experiências. Por vezes corre-lhe mal - uma situação particular em que achava que estava no controlo ia-se virando contra ela -, mas a Julie é destemida e tem uma imensa vontade de aprender e melhorar.
Outros pontos de interesse prendem-se com algumas questões sociais, e os tipos de preconceito que prevalecem na pequena sociedade que rodeia a propriedade. Temos Mary, a bibliotecária da terra, que tem algum tipo de deficiência física no rosto e que é surda, o que condiciona a percepção que as pessoas têm dela. (A certo ponto, também a própria Julie assume coisas acerca da Mary que não devia.)
Temos uma exploração de desejos e sexualidade por parte da Julie, que reconhece que se sente atraída por ambos os sexos; e uma visita a um espectáculo de variedades apresenta-a a uma cantora trans. Numa época em que estas vivências nem sequer eram reconhecidas, quanto mais terem um nome, é de partir o coração ver as pessoas não poderem ser exactamente quem são, ou explorarem livremente o que querem porque nem se falava disso.
Outro aspecto do preconceito prende-se com a presença de travellers escoceses. A comparação mais directa que posso fazer é que são como ciganos ou Romani do Sul da Europa; mas calculo que tendo a Escócia uma história e sociedade algo diferentes do Sul Europeu, também hajam diferenças culturais, sociais e étnicas entre os dois grupos, por isso não são paralelos directos.
No entanto, são-no em muita coisa. Os travellers são nómadas, viajando dum lado para o outro conforme encontrem trabalho. Como não estão fixos, encontram muito pouca aceitação por parte da população sedentária, e todo o tipo de injustiças por falta de compreensão do seu modo de vida.
Quando as acções criminosas no início do livro se dão, os suspeitos óbvios para as pessoas são os travellers. Ellen e Euan, dois jovens que a Julie e o irmão conhecem no livro e com quem fazem amizade, nunca puderam terminar a escolaridade por dificuldades interpostas por quem de direito. É incrivelmente triste porque a Ellen parece ter interesses académicos, e nunca poderá segui-los.
Curioso é no meio disto tudo ver de onde vêm os preconceitos. Vemo-los mais entre as classes trabalhadoras, que não se podem dar o luxo de não ter preconceitos e não terão instrução suficiente para ultrapassar os mesmos. É entre a família de Julie que a família de Ellen e Euan encontra amigos, o que é interessante de considerar: é um pouco de classicismo enraizado na sociedade, já que esta família nobre tem, pela sua posição social, uma instrução diferente que lhes permite questionar os preconceitos que se lhe deparam, e pronto, podem realmente dar-se ao luxo de não ter preconceitos.
No entanto, neste aspecto nem tudo é mau: Mary, por exemplo, que era muito aversa aos travellers - alguém alvo de preconceito a enraizar outro preconceito em si mesma -, acaba por se abrir à sua presença, e confrontar esse mesmo preconceito que pintava as suas percepções. Aceita a presença de Ellen e acaba por ver o quanto esta última adora história e entende dos artefactos da propriedade, o quanto pode ajudar na avaliação do espólio. (Um pouco de esperança nesta sociedade dos anos 30.)
No entanto, neste aspecto nem tudo é mau: Mary, por exemplo, que era muito aversa aos travellers - alguém alvo de preconceito a enraizar outro preconceito em si mesma -, acaba por se abrir à sua presença, e confrontar esse mesmo preconceito que pintava as suas percepções. Aceita a presença de Ellen e acaba por ver o quanto esta última adora história e entende dos artefactos da propriedade, o quanto pode ajudar na avaliação do espólio. (Um pouco de esperança nesta sociedade dos anos 30.)
No que toca a enredo, achei o início do livro um pouco aborrecido. Acho que leva algum tempo até estabelecer as peças do puzzle, e da história, e o ritmo é bem mais calmo que no Verity, o que é um tudo-nada desconcertante. (Mas muito necessário.)
Quando a narrativa ganha tracção, lê-se muito melhor, e como vimos tem tanto sumo a espremer; contudo, o fim e a revelação dos mistérios também podia ser melhor trabalhada. Achei a cronologia das revelações algo confusa, ou melhor, não suficientemente clara. Há uma coisa que faz clique - a identidade do corpo que é encontrado -, o resto nem por isso, e isso fez-me confusão. Acho que a autora é bem mais capaz que isso.
Queixas à parte (foi só esta), este é um excelente livro. A Elizabeth Wein tem mão para nos imergir na atmosfera de uma época, e ela evoca esta Escócia dos anos 30 fantasticamente, mostrando uma fatia da sociedade escocesa, e discutindo alguns problemas sociais dela de forma directa e clara, e apresentando todo o tipo de detalhes que fazem um óptimo trabalho a complementar a pintura e esclarecer o leitor. Pode ter começado menos bem, mas o livro melhorou largamente e foi cativante até ao fim. Estou muito contente por ter tido a oportunidade de o ler.
P.S.: Quem é que está na capa? A Julie não é, que é descrita como loira. E a Ellen creio que também não. Aiaiai, editoras a mandar fazer capas que nem fazem sentido com a história...
Páginas: 412
Editora: Bloomsbury
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