Opinião: Um livro tão pequenino e aparentemente tão simples, e ainda assim tão informativo e com uma introspecção singular, bastante impressionante no sentido em que a autora leva as ideias. Se pudesse, punha toda a gente a ler este seu livro, porque escreve muito bem, explica maravilhosamente as suas ideias, e nunca se torna aborrecida ou morosa, mesmo a explicar conceitos científicos.
Este livro faz mais sentido no seu país de origem, é verdade. Há uma corrente anti-vacinação nos EUA, presa a estudos que comprovadamente eram falsos e/ou errados, mas que persiste nas suas ideias. E aqui a inteligência de Eula Biss é que ela nunca se radicaliza, apesar de podermos facilmente lê-la como pró-vacinação.
A autora fala da sua experiência com a maternidade e como isso a pôs a pensar nestas questões, e é ao escrever do ponto de vista de uma mãe preocupada, para outras mães preocupadas, que ganha autoridade para discutir a questão sem extremismos ou histeria. É-lhe muito mais fácil captar a atenção do leitor porque ela nunca insulta quem não vacina os filhos, e valida as suas preocupações, ainda que lhes mostre porque estão errados. Gosto muito do tom dela a discutir a questão precisamente por isso, é caridosa mesmo para quem tem uma posição diferente da dela.
Achei muito interessante os pontos que ela fez sobre a vacinação, porque é o tipo de coisa que nunca nos ocorreria no dia-a-dia, mas que está tão integrado no subconsciente das pessoas e na sociedade que simplesmente faz sentido. Como as origens da vacinação na inoculação de varíola nos séculos XVIII e XIX, um procedimento menos seguro e mais "sujo", acabam por levar a que subconscientemente a vacinação seja vista como um procedimento invasivo e mais perigoso que realmente é.
O paralelo com o Drácula e com as transfusões de sangue, e com as práticas médicas de sangramento também é curioso. As questões políticas e económicas por trás de muitas mudanças na área também são abordadas, e formam mais uma razão para rejeição da vacinação. Ainda mais num país como os EUA, com uma história tão recente e tão baseada na rejeição da autoridade, e essa saudável desconfiança da autoridade torna-se numa não tão saudável desconfiança da vacinação, que está associada a essa autoridade, pois é geralmente o estado que promove a vacinação.
O ponto alto, no entanto, para mim, foi a ideia de vacinação como um serviço que não fazemos só a nós próprios, mas como um serviço público, para os outros. Como a imunidade prevalente numa sociedade com altas taxas de vacinação impede a circulação de certas doenças e protege assim aqueles com problemas imunitários, ou que não se podem vacinar por alguma outra razão.
E como esse aparente egoísmo da não-vacinação promove a circulação e ressurgimento dessas doenças, o que enfraquece a imunidade de grupo, e em última análise, o próprio. É uma questão fascinante de observar, especialmente (e ainda) nos EUA, com uma filosofia muito própria e focada no eu e na responsabilidade própria e individual, e com falta de foco na sociedade e na integração do indivíduo nesta. Há aqui ainda uma questão social e de classe que é abordada, e é bastante importante que seja abordada.
Ainda tenho a apontar o argumento que a autora faz acerca da percepção de risco. Todos os dias se faz tantas coisas muito mais perigosas sem pensar muito nisso, mas no entanto obcecamos com os cenários mais incomuns, mas que percebemos como mais perigosos e mais prevalentes. Também um argumento bastante válido para a questão da não-vacinação.
Por último, só tenho a apontar, e faço isto porque a editora abriu a porta a isso, apresentando uma breve biografia dos tradutores no fim - então deram-se ao trabalho de contratar dois tradutores da área das letras (para traduzir um ensaio de não ficção relativamente curto, ainda por cima), mas nenhum das ciências? Num livro com tema e conceitos científicos?
Porque, sim, dei por algumas ocasiões em que achei que as expressões traduzidas não eram as mais correctas para explicar e transmitir o conceito científico. Não que dificultem a compreensão do texto, mas a cientista em mim revolta-se contra incorrecções e imprecisões científicas.
Se eu, que estudei Imunologia básica, dei por isso, que mais valia não teria sido arranjarem alguém que estivesse à vontade na área? Nem que fosse para ler o manuscrito traduzido e dar uma opinião e/ou sugestões. A sério, não percebo a preguiça das editoras na área da tradução. Porque de resto a edição parece-me bem produzida, por isso não vejo porque não se há de ter esse cuidado.
Título original: On Immunity: An Inoculation (2014)
Páginas: 224
Editora: Elsinore (grupo 20|20)
Tradução: Joana Caspurro e José Pinto de Sá
Desde que ouvi falar deste livro que o quero ler. Pena essa questão da tradução.
ResponderEliminarBoas leituras
Não é muito má, a tradução, pelo menos penso que nunca chega a incomodar. São mais imprecisões e preciosismos que me custa que não tenham sido acautelados, e que são aumentados porque já estou algo saturada de ver más traduções por aí. :/
EliminarPorque de resto, o livro vale muito a pena, e recomenda-se. ;) Se vieres a ler, espero que gostes. ^_^