quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Heartless, Marissa Meyer


Opinião: Dói-me o coração. Li este livro há um rol de tempo, no início do mês, e raios, ainda me dói o coração só de pensar nele. Depois das Lunar Chronicles confio na Marissa Meyer para praticamente tudo, mas estava bastante céptica com esta premissa - uma história de origem para a Rainha de Copas. Não é que a Marissa não saiba escrever do ponto de vista dum vilão - o livro Fairest é um bom exemplo de como fazer a coisa sem exagerar; mas não tenho propriamente uma ligação emocional com o livro que suscitou este recontar, e por isso achava que podia passar-me largamente ao lado.

Afinal, era escusada a preocupação. A Marissa é uma deusa dos retellings. Há esta coisa que ela faz em que pega em elementos reconhecíveis da história original, e que são parte da cultura popular no que toca à mesma, e embebe-os numa história muito sua, completamente única, e que ainda assim retém aquela familiaridade do conto. É algo fascinante de ver. E sobretudo, a história é pontuada pela sua escrita cuidadosa e pela maneira como desenvolve o enredo, tão cativante e devorável.

Heartless começa a história focado nos interesses simples da sua protagonista. Catherine vive em Hearts, um reino de Wonderland, e é filha de um marquês. Conta-se entre a nobreza do reino. No entanto, ela adora cozinhar, fazer bolos e coisas doces e deliciosas. Sonha em abrir uma padaria/pastelaria. Só que a sua posição social dificulta-lhe seguir o seu sonho, especialmente quando os pais têm aspirações a subir socialmente, e quando ela, sem querer, cativou o olhar do rei de Copas, ainda solteiro...

E aí está o conflito principal, a razão pela qual o livro me parte o coração: a situação da Catherine. Conforme a época em que o livro que inspira este foi publicado - a época Vitoriana -, a sociedade de Hearts é rígida em certos pontos, particularmente na intransigência das classes sociais, mas também na pouca liberdade que dava às mulheres.

A Catherine é prisioneira da sua posição social e das expectativas dos seus pais: ela deseja um rumo muito diferente para a sua vida, mas quando o rei quer cortejá-la, ela não consegue dizer que não, apesar do seu coração querer algo muito diferente. Foi uma parte desesperante do livro para mim: eu gostei muito da Catherine e da sua personalidade, mas matou-me ela não conseguir libertar-se, mandar toda a gente à fava e dizer não, cortar com o comboio descontrolado que teimava em levá-la para outro lado.

À medida que a situação escalava e se tornava pior, enterrando mais a rapariga em algo que ela não queria, mais aflita eu ficava. No fim de contas, não posso culpá-la por se enterrar no buraco, por não ser capaz de resistir; mas posso entristecer-me com ela não ter tentado o suficiente - senti que ela só começou a lutar pelo que queria, a mostrar garra, demasiado tarde -, e com o facto de os pais dela só terem pensado no que a faria feliz demasiado tarde (a cena final deles é de partir o coração; eles perguntam se ela será feliz, e ela responde que diferentes seriam as coisas se eles se tivessem preocupado com isso antes).

E é isso que me mata também. Pode-lhe faltar um bocadinho de coragem no início, mas a miúda tem bom fundo. É gentil, e encontra um certo prazer nas coisas simples, como um bolo bem feito. Ganha uma garra especial a certa altura, mostra que podia ser a monarca que uma certa profecia apresentava. Mesmo quando está zangada com aqueles de quem gosta é capaz de ir em seu socorro (algo que será a sua ruína, mostrando que de boas intenções está o inferno cheio). Quando ganha coragem para se libertar das expectativas, é incrível vê-la, sabemos que poderá fazer coisas grandes (ela é mesmo assustadora e impressionante no fim, quando está muito próxima da Rainha de Copas que conhecemos).

É isso que me mata, realmente. Eu gosto da rapariga, a Marissa escreveu a protagonista mais gostável de sempre, mesmo com as suas falhas não posso ficar zangada com ela, e ela está destinada a tornar-se numa vilã. Estou zangada contigo, Marissa. Sinto-me manipulada. Não podes simplesmente fazer-me gostar dum personagem, fazer-me desejar-lhe tudo de bom, e depois tirares-me o tapete debaixo dos pés e fazer com que corra tudo mal. E mostrar duma maneira linda e perfeita como uma miúda adorável e doce vira uma louca obcecada com cortar cabeças. Não pode ser. Eu ainda tenho um coração (eh) que não aprecia ser torturado desta maneira.

Passemos a coisas mais agradáveis. Vou tentar não pensar mais em como este livro me torturou durante a sua leitura. Ok, como disse ali em cima, não tenho grande ligação aos livros que inspiraram este. Li este ano os livros da Alice, mas aquilo foi demasiado nonsense/sem-lógica para a minha cabeça. Posso apreciá-los duma forma intelectual, compreendendo o seu propósito, mas fora isso, not my cup of tea.

Tendo dito isto, adoro a maneira como a autora adaptou o mundo. Há montes de referências ao original, pegando no worldbuilding, e expandindo-o e adaptando-o para contar esta história. Há referências ao reino de Copas/Hearts, mas também a Chess, o reino de onde as White Queen e Red Queen vêm. Há conceitos acerca do xadrez que têm a ver com alguns dos personagens. Há histórias de origem para outros personagens (como a Mock Turtle... e a Lebre de Março, o Chapeleiro).

Mantém-se o aspecto de nonsense e excentricidade que permeia o original, mas a Marissa organiza a sua história duma maneira muito mais lógica e que vai de encontro aos meus gostos. É perfeita, a maneira como o faz. Soube-me tão bem ler e reconhecer tanta coisa do original aqui reflectida, e ao mesmo tempo sentir-me em casa porque me identifico muito mais com a escrita da autora.

Ainda a destacar: os personagens. Boa caracterização, gosto de como a autora deu uma personalidade própria a toda a gente. Foi muito interessante conhecer o Chapeleiro dela, ou a Lebre ou o Coelho Branco (ou o rei de Copas, o tolo), mas também alguns dos personagens novos; as Sisters, o Raven, a Mary Ann, o Peter Peter... e claro, não podia deixar de mencionar o Jest.

É que ele é bastante crucial ao percurso da Catherine, por ser o motor da mudança do mundo dela e de como vê as coisas. Achei o início da história deles algo instalove, afinal ela sonha com ele antes de o conhecer e fica logo meio obcecada depois da primeira vez em que o vê. O que soa um bocadinho parvo. Mas enfim. Ao passarmos isso, como a história deles acaba por ser muito Romeu e Julieta, sempre carregada com tensão e com a perspectiva de tragédia, é muito fácil deixar-se enlevar por ela.

Quando as coisas correm mal - porque vá lá, é óbvio que esta não seria uma história de origem duma vilã se corressem bem -, bem... partiu-se-me o coração. Foi tão triste ver como tudo o que podia correr mal, correu mal e descambou tão depressa. A única coisa boa do fim foi ver a Catherine em modo "rainha de Copas louca". Arrepiante.

E pronto, o fim. Só tenho a acrescentar que era realmente uma cética, não acreditava que a Marissa pudesse fazer-me gostar tanto de Wonderland. Estou a modos que feliz por estar errada, porque não podia ter gostado mais da viagem. Acho que posso dizer que seguiria esta senhora a qualquer lado para onde ela vá. (O que é bom, já que vai haver uma banda desenhada passada no mundo das Lunar Chronicles publicada já no próximo mês...)

Páginas: 464

Editora: Feiwel & Friends (MacMillan)

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