quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Tens Coragem?, Megan Abbott


Opinião: Eu queria tanto gostar deste livro. Ando há que tempos com vontade de ler esta autora, depois de ter ouvido falar do seu The Fever, sobre uma comunidade em que algumas adolescentes começam a desenvolver sintomas de uma doença misteriosa, e sobre a histeria que nela se espalha sobre a origem da doença.

E por isso saltei com a oportunidade de ler este livro, traduzido em português, da mesma autora; ela costuma ao que sei ter boas opiniões, e ser bastante divisiva, o que me deixava curiosa para ler qualquer coisa dela.

Pois bem... gostei e não gostei. Não gostei porquê: o ritmo do enredo é péssimo. A primeira parte (para aí 70% do livro) é super parada, muito baseada na caracterização psicológica (o que não é mau em si mesmo), e depois o mistério em torno de um crime que acontece dispara, as suspeitas acumulam-se, e a coisa fica excitante. Um bocado tarde demais; quase que parece que o livro não sabe o que quer ser: um thriller de acção ou psicológico.

Depois, esta coisa de "olhem para esta história, vejam como as pessoas normais são lixadas" que acontece em alguns thrillers? Tornou-se mais proeminente no Gone Girl (e a razão pela qual este me aborreceu de morte). E é tão mentira. O meu problema com o GG era que aquelas não eram pessoas normais (um era sociopata, o outro mentiroso compulsivo). Sim, as pessoas podem ser tão destrutivas e loucas como ambos os livros mostram. Mas os personagens em si não são um bom exemplo de "pessoas normais", se é que esse conceito pode ser usado (é bastante redutor)

Aqui no Dare Me a autora falha um pouco em criar uma atmosfera de credibilidade no que toca à parte do crime, como foi feito, porque foi feito... passa tanto tempo na caracterização psicológica da protagonista e das raparigas adolescentes que a rodeiam, que se esquece um pouco de dar suporte ao crime e às suas causas, até revelar no fim em jeito de telling, e não showing, o que realmente se passou. Só tem um bom suporte na sua relação com as adolescentes no centro da narrativa.

Terceira razão pela qual não gostei? Ugh, o pretensiosismo da escrita. Que vontade de esganar alguém, porque é a coisa que mais abomino. Consigo respeitar um escritor que escreve bem, e sabe que o faz. Se ele for capaz de partilhar o seu brilhantismo comigo duma forma humilde. Se ele escrever duma forma económica mas inteligente que me permite aperceber do que está a dizer sem mo esfregar na cara.

Não consigo respeitar alguém que escreve frases floridas só para dizer que escreve frases floridas, e para dizer que "escreve Literatura (sim, o L maiúsculo é importante para destacar o snobismo da coisa)". Há partes em que a escrita é demasiado fragmentada, demasiado confusa, e o "lirismo" não ajuda nada a clarificar, só a confundir mais. Talvez seja porque o livro não se conseguia decidir que tipo de história era, que rumo estava a tomar.

O que me mata, é que se removêssemos estes problemas que tive com o livro da equação, podia ser francamente brilhante. Até a escrita tem os seus momentos, quando não está demasiado ocupada a ser "bonita".

Porque este é um retrato extraordinário e incrivelmente honesto e realista de um grupo de raparigas adolescentes. É muito comum ver as pessoas a gozarem com o ser adolescente, particularmente o ser uma rapariga adolescente. Os seus interesses são escrutinados, ridicularizados. Este livro, no entanto? Podia ser uma lição em como, se realmente quisessem e tivessem interesse nisso, as raparigas adolescentes podiam dominar o mundo.

É deliciosa a maneira como a relação entre estas miúdas é descrita. Um grupo de cheerleaders sem rumo, e a chegada à escola duma treinadora nova interessa-as, motiva-as a serem melhores, fazerem coisas incríveis. Estas são pessoas que são atletas que dão no duro, que se matam para fazer uma rotina perfeita se for preciso. Há uma dedicação canina à coisa que é fascinante de ver, depois do interesse delas ser suscitado e dirigido.

E depois as relações pessoais entre elas, e entre elas e a treinadora... todo um retrato de como um grupo de mulheres juntas pode ser brutal umas com as outras, de como em grupo podemos ser tão tóxicas umas para as outras, ainda que sejamos capazes de atingir o extraordinário. Na adolescência particularmente, e é fascinante elas deitarem-se abaixo e se reconstruírem, e lutarem em conjunto por um objectivo e como no caminho se deixam encantar por uma cara nova.

No centro disto tudo está a relação entre as três mulheres principais da trama: a Addy, a narradora, completamente cativada pela treinadora; a Beth, a capitã da equipa que é a única que não embarca no fascínio; e a própria treinadora, Collette French, uma mulher com os seus problemas próprios que é uma janela para o estado de ser adulto, algo que encanta as jovens do grupo.

E é incrível, vê-la desenrolar-se e como acaba por dirigir a narrativa e os seus acontecimentos. A Addy e a Beth têm um longo historial para trás, e isso condiciona as suas acções. A Addy em si é particularmente interessante; alguém no Goodreads descreve-a como uma espécie de Nick Carraway, o que é perfeito. Em muitos aspectos, a Abby desliga-se dos acontecimentos e da sua responsabilidade deles, limitando-se a narrar o que vê, sem ter que se envolver particularmente, sem ser o motor deles.

E a sua lente inteiramente egoísta e auto-centrada é algo muito interessante de ver acontecer; a Addy acaba por não ser uma narradora confiável, porque muito lhe passa ao lado. Habituada a ser a lugar-tenente da Beth, de fazer o que lhe é dito sem ter de pensar por si própria, de tomar a liderança. É incrível como ela não vê o culpado, mesmo à frente dela aquele tempo todo. Só quando ela começa a pensar sobre o crime que aconteceu, as coisas contraditórias que lhe contaram as pessoas que podem ser os suspeitos, é que ela começa a tentar desenterrar a verdade.

E esse processo, na recta final do livro, é muito excitante. Fez-me finalmente duvidar de tudo e todos, e encontrar culpados em todas as esquinas. Mesmo tendo sido apresentado um culpado, ainda assim consigo ver como podia facilmente ter acontecido doutra maneira, e a pessoa estar a ser acusada erradamente. (Pouco provável, mas um exercício interessante de fazer.)

É quando a Addy se liberta das relações tóxicas em seu torno que finalmente cresce para ser a melhor versão de si. É um desabrochar bem curioso de observar, especialmente quando ela e as outras raparigas passam o tempo livre a fazer alguns disparates.

Em última análise, este também é um livro sobre como os adultos responsáveis por estas jovens lhes falham completamente. Os pais da Addy e da Beth raramente aparecem, e não se mostram interessados pela vida das filhas; abandonam-as e deixam-nas à solta, fazendo o que querem. Não ia acabar bem. A treinadora arranja os seus próprios problemas, apesar de aparentar ter uma vida perfeita, e as suas acções são um péssimo exemplo para as jovens que a rodeiam. Ela acaba por tornar a Addy cúmplice de algo que esta nem sequer consegue processar, compreender a gravidade de.

Ah, céus, eu queria mesmo gostar. Queria. E de certos pontos, adorei. Passei um bom bocado, se só os considerar. O problema é o resto. As coisas negativas que apontei são bastante determinantes no meu gostar ou não de um livro, e ofuscam largamente os pontos positivos. Não excluo ler outro livro da autora no futuro, para ver se o problema é dela ou meu, mas também não vou já a correr fazê-lo

Título original: Dare Me (2012)

Páginas: 288

Editora: Saída de Emergência

Tradução: José Saraiva

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