Filipe Melo, Juan Cavia, Santiago Villa
Ah, diria que a este ponto estes livros deviam ser indispensáveis em qualquer estante. (Portuguesa, pelo menos. Mas world domination também não era mau.) Uma série que começou quase por acidente, sendo que originalmente a história do primeiro volume foi concebida como o argumento de um filme. Apercebendo-se que em Portugal não é propriamente possível criar filmes de pendor paranormal ao nível do que se vê lá por fora, o argumentista Filipe Melo virou-se para a banda desenhada, aliando o trabalho no traço de Juan Cavia com a cor de Santiago Villa, dois argentinos. O que ainda é mais interessante tendo em conta que a história tem um tom tão... português.
E não digo isso no mau sentido. Digo porque a acção se passa em Portugal, o que é tão refrescante. (Uma das taglines dos livros era algo do género "o destino do mundo vai ser decidido em Lisboa".) Ver(ler) uma(s) história(s) de acção, terror e paranormal no nosso país não é muito comum, mas é muito bem vindo.
Digo-o também porque apesar de nunca terem vindo a Portugal antes da criação do primeiro livro, os dois argentinos criaram em desenho uma fantástica Lisboa atmosférica, muito impressionante e realista na medida do possível (afinal é uma história com zombies). Adorei ver retratadas as ruas características de Lisboa, bem como sítios como o Marquês de Pombal, a Ponte 25 de Abril, ou até o Centro Comercial Colombo, que é destruído numa certa altura, ou a Assembleia da República...
Digo-o ainda porque adoro o tom simplesmente português da narrativa e dos acontecimentos. O Pizzaboy e o seu nome (Eurico), o quão azarado e cronicamente atrasado é, as expressões típicas (ainda me estou a rir duma referência a fazer "um bicho de sete cabeças" no segundo volume, o do Apocalipse, e em linha com este último, aparecer literalmente... um bicho de sete cabeças) - isto é o tipo de coisa que traduzido não tinha piada nenhuma. Que tradução é que se pode fazer duma referência ao Inspector Max? O livro capta tão bem referências da cultura popular portuguesa, é genial.
E as piadas? São lançadas em todas as direcções, à burocracia (particularmente a Segurança Social e à fuga complexa que o Dog faz) e ao governo (o terceiro volume é particularmente interessante, pois é desenhado o primeiro-ministro da altura, e acontece-lhe uma coisa que imagino que muitos portugueses terão imaginado também), à publicidade crónica (os contos fazem umas piadinhas giras)... o segundo livro nem se esquiva a brincar um bocadinho com o terceiro segredo de Fátima e com a Nossa Senhora de Fátima.
O sentido de humor é realmente abundante e de encontro ao meu gosto. A forma demoníaca do Pazuul? Tão engraçada. E pronto, há uma certa atmosfera evocada que é claramente uma homenagem ao gosto autoral por certo tipo de filmes de horror... não estou assim tão familiarizada com eles, provavelmente, mas dá para apanhar umas referências, e gosto do tom, por isso achei isso cativante.
O que também é interessante é ler os livros e ver uma certa evolução dos autores ao longo deles. A história é fantástica, a arte cinco estrelas, ninguém lhes tira isso, mas no primeiro livro e talvez um pouco no segundo se note uma certa infamiliaridade com a BD, com a maneira como se conta a narrativa neste formato, como o enredo evolui, como se apresentam as coisas visualmente. O que não estraga nada a coisa, mas dá para ver o salto na maneira como a história é apresentada.
O terceiro volume nesse aspecto é bem mais completo e complexo, por exemplo. Consegue combinar a acção com um tom intimista e reminiscente, evocando o passado dos protagonistas e as suas aventuras, como forma de lhes terminar as aventuras. (Gosto bastante de ver o Eurico já mais velho, é muito interessante ver um tipo que já se estabeleceu voltar às loucuras de juventude.)
No meio disto tudo acho que tenho pena é que o quarto livro, o dos contos, seja tão curtinho. Reúne 4 contos de 8 páginas que foram escritos para a Dark Horse, e é muito divertido ver a origem do Dog e ver como ele lidou com o monstro de Loch Ness... mas sabe a pouco, raios. Até seria divertido ler mais mini-contos do género.
Ah, e agora já estou com saudades de ler isto outra vez. Suspeito que são mesmo livros merecedores de releituras, porque acredito que me dêem o mesmo gozo a ler, que sejam igualmente divertidos em releituras, e que não percam a piada. São uma pequena estrela cadente que iluminou por um bocadinho o panorama editorial português... é pena que não apareçam pérolas destas mais vezes.
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