Opinião: Era uma vez, há muitos anos atrás, apanhei uma série a passar na televisão. (Abençoada RTP2 quando passava um sem número de séries.) Não me lembro do título que lhe deram em português, mas era esta. Gostei mesmo do conceito e da execução, e do ambiente e dos personagens, e até da maneira como os mistérios se desenrolavam.
Resultado: andei nos meses (anos? não consigo precisar) a caçar livros do Rex Stout que pudessem ter o detective Nero Wolfe, e que foram publicados em Portugal pela colecção Vampiro na Livros do Brasil; só que já nessa altura, muitos dos livros eram difíceis de encontrar. Ainda li umas quantas coisas, e diverti-me com elas, mas infelizmente acho que não posso dizer que tenha adquirido e lido sequer o equivalente a metade da série. Uma pessoa cansa-se de andar a caçar livros impossíveis de encontrar, e parte para outras coisas.
Tinha saudades, no entanto. Há algo que a série de TV captou tão bem, que é o tom e o sentido de humor do autor. (Pelo menos penso que sim. Vi a série há tanto tempo.) Mas pronto, posso dizer que fiquei contente por ver que esta "reedição" ou lá o que é da colecção Vampiro inclui o Rex Stout; pode ser que desta vez eu consiga ler a série toda do Nero Wolfe.
Nero Wolfe é um detective peculiar. Obeso, reclusivo, não sai de casa para resolver casos; os casos vêm ter com ele. Nero interessa-se e desinteressa-se de casos com a mesma rapidez com que mudaria de camisa; mas quando um tem o seu interesse, é implacável. A investigação fora de casa deixa ao cargo do seu assistente/secretário/homem-dos-sete-ofícios, Archie Goodwin, sarcástico a tempo inteiro e sério apenas quando está inclinado para isso, e ocasionalmente, a outros detectives que contrata para ajudar num caso.
Sempre gostei muito desta dupla e de como o Rex os escreve. O Nero Wolfe é um tipo sisudo, impenetrável, quase misantrópico. Tem horários rígidos (ai de quem o queira interromper das 9 às 11 da manhã, e das 4 às 6 da tarde, quando dedica tempo ao seu hobby, jardinagem de... orquídeas), é um gourmet inveterado, e revira este mundo e o outro se isso impedir que tenha de sair de casa.
O Archie faz uma piada de tudo, mas é imensamente observador e reconta perfeitamente o que observou, interrogou, encontrou ao Nero, e por isso é essencial ao processo de investigação, ainda que nenhum dos dois provavelmente o admita. Além disso, o Archie, com o seu sarcasmo e piadinhas, é a pessoa perfeita como contraponto ao Nero; diria que o atiça, puxa por ele, mantém as coisas interessantes.
Creio que o Rex Stout fez uma caracterização excelente com estes dois. Nunca faz parecer que um é mais que o outro; são iguais, de certo modo, apenas pessoas com capacidades diferentes e que se complementam bem. O Nero nunca seria capaz de sair de casa e andar a interrogar pessoas e facilitar certos acontecimentos; tal como o Archie também detestaria ficar fechado em casa e e fazer conexões impossíveis entre coisas aparentemente não relacionadas.
Outra coisa que apreciei no autor quando o li no passado, e novamente com este livro: o sentido de humor. Não só nas observações e comentários do Archie (que é o narrador da história e absolutamente hilariante), mas nos próprios acontecimentos, na domesticidade da casa-prédio (uma brownstone, que sonho) de Nero, nas interacções dele com o Archie, e ocasionalmente com as pessoas envolvidas no mistério.
O mistério em si contado neste livro parece-me ser um bom exemplo das histórias contadas por Rex Stout, pelo que me lembro: um acontecimento banal revela ser um mistério convoluto, com reviravoltas sobre o método do assassinato, o papel do assassino e até do assassinado. E curiosamente, o culpado é estabelecido bastante antes de o livro terminar: o interesse prende-se mais com a maneira como vai ser apanhado, e a história resolvida. (E a solução deste é bastante interessante. A acusação que o Archie faz ao Nero no fim, ainda mais.)
Ah, espero que não demorem muito até publicar o próximo livro do Rex Stout na colecção Vampiro. Que vontade de matar saudades outra vez.
P.S.: Pergunto-me se a tradução é nova ou a original da Livros do Brasil? Achei ali umas coisas estranhas no meio que precisavam de tradução e revisão cuidadas. (Como a referência aos anos 50 que apanhei - a história passa-se em 1933.) Preguiça much, Porto Editora? Não é só comprar uma editora mais pequena e aproveitar-se da colecção literária que eles já têm; bem que podiam juntar algum valor literário à aquisição, usando as vossas capacidades para melhorar o produto que apresentam. E um livro é sempre um produto, por mais que queiramos fingir que não.
Título original: Fer-de-lance (1934)
Páginas: 296
Editora: Livros do Brasil
Tradução: Eduardo Saló
Completamente off topic: já viste a sinopse? https://www.goodreads.com/book/show/31931722-the-girl-with-the-make-believe-husband
ResponderEliminarAfinal a moça não é americana, mas o resto é basicamente o que já tínhamos falado :D
Quando vi o teu comentário no meu e-mail, a minha resposta imediata foi sair-me um: "então se não é americana... é o quê?" xD Afinal isto ainda o torna mais convoluto, a moça fugiu de casa! :P *esfrega as mãos de contentamento* Assim vai ser difícil ao Andrew arranjar uma história ainda mais estranha... xD
EliminarSim, estávamos naquela que se ele ia conhecer alguém na América então ela tinha de ser obrigatoriamente americana, mas ainda não é desta que a JQ se atreve.
EliminarMas bolas que a Cecilia é corajosa, pelo que percebi ela vai viajar completamente sozinha para encontrar o irmão do outro lado do Atlântico. :O
Pergunto-me se ele lhe vai dizer que recuperou a memória mal a recupere ou vai entrar na jogada, eeeeek quero este livro JÁ! :D