Opinião: Há livros para os quais é bastante difícil escrever uma opinião, e muitas as razões pelas quais isso pode acontecer. O livro pode fazer parte duma série favorita, ou ser dum autor favorito. Pode até ser o último dessa série, e ser algo complicado dizer adeus. Pode ter tudo o que esperávamos e tudo o que não sabíamos que queríamos. Pode ser longo como nunca se leu, e mesmo assim estar cheio de reviravoltas e razões para continuar a ler, e pode mesmo assim ter parecido curto, de tanta coisa que contém, e mesmo assim tanta coisa que podia ainda ter.
Se ainda não é óbvio com todo este palavreado, é claro que estou a falar do Winter. Passei tanto tempo a suspirar por este livro, a desejar lê-lo, a criar expectativas, que quando me chegou até tinha alguma relutância em começar, porque como é que o "filme" que eu tinha feito na minha cabeça podia ser comparável com a realidade?
Creio que é nisso que a Marissa Meyer se tornou mesmo boa. Ela tem vindo a manter o equilíbrio narrativo por quatro livros, aumentando a cada um os POVs que acompanhamos, e aumentando o alcance da história, e a quantidade de coisas que tem de ter no enredo para a narrativa fluir e concluir satisfatoriamente - e acho que posso dizer que ela fá-lo neste livro duma maneira fantasticamente impressionante, praticamente sem vacilar.
Há pequenas imperfeições, claro; por um lado podemos argumentar que a narrativa podia ser mais curta (o livro tem 800 páginas) - contudo, simplificar a narrativa seria um demérito que se lhe fazia, e à capacidade da Marissa introduzir reviravoltas e acção a cada canto; por outro, acho que podia dizer que mesmo assim o livro não é longo o suficiente.
Podíamos ter facilmente dois livros disto, e desenvolver certos pedaços da narrativa - coisas que a Marissa introduz, porque faz sentido serem introduzidas, para o desenvolvimento dos personagens e do enredo, mas que fiquei a sentir que podíamos espremer muito mais sumo dali, se tivéssemos mais espaço.
Não me importava nada de ter outro livro, afinal só tivemos um livro passado em Luna, e a sociedade Lunar é tão fascinante que podíamos bem ter mais um. (Agora pergunto-me é qual o conto de fadas que a Marissa poderia recontar nesse quinto livro...)
Por falar no recontar de contos, tenho adorado a maneira como a Marissa o fez. Não segue à risca a história original, porque isso não faria sentido neste mundo, e de qualquer modo não seria desafiante, mas depois faz uma homenagem aos momentos icónicos dos contos em que se inspira, e oh, é brilhante. Tem-no sido até agora, e aqui volta a sê-lo.
Aprecio deveras a relação da Levana com a Winter, a forma como a sociedade Lunar condiciona os comportamentos delas e como isso se relaciona com o conto, e quase perdi a cabeça (no bom sentido) ao reconhecer os momentos da maçã envenenada e do caixão de vidro. (Tal como me aconteceu com o momento "mas que orelhas tão grandes tens tu, avó" do Scarlet...)
E agora, o que é que eu digo mais, que seja minimamente coerente? Gostei mesmo de acompanhar a história em Luna, conhecer melhor o, er, corpo celeste que tanto trabalho tem dado aos nossos protagonistas. As coisas são mesmo más na sociedade Lunar, o modo como os regentes têm forçado a estratificação em classes, e como têm isolado os vários sectores de Luna de forma a que as pessoas se mantenham mergulhadas no medo, ao mesmo tempo que produzem para benefício de uns poucos escolhidos. Talvez um pouco por ter acabado de ver o segundo filme do Em Chamas, mas sim, a sociedade lembra-me a do mundo da Suzanne Collins - talvez também porque através desse terreno comum se pode fazer uma crítica à sociedade dos dias de hoje.
O casal protagonista desta vez é o par Winter, a princesa enteada da rainha Levana, e o Jacin Clay, o guarda real que se tem metido num monte de sarilhos. Quando a história começa eles já são completamente dedicados um ao outro, o que calculo que não é totalmente inocente da parte da Marissa. Num livro tão grande e tão cheio de outros acontecimentos e personagens, facilita o desenvolvimento do romance, até porque já tivemos algumas pitadas deles anteriormente.
De qualquer modo, achei-os tão giros, naquela dedicação e ao mesmo tempo negação toda. A Winter não avança porque não se acha merecedora, já que a sua recusa em usar os poderes Lunares fá-la ter frequentemente alucinações e visões. O Jacin não avança porque, bem, a moça é uma princesa, como é que um mero guarda real vai ter hipóteses?
E no entanto, a cumplicidade entre eles está lá, e a dedicação mútua é impressionante. Da parte do Jacin, especialmente, que fez um monte de asneiras só para voltar para perto dela, e continua a fazer tudo para mantê-la a salvo. A cena em que ele assume o papel do caçador do conto original é assombrosa.
Quanto à Winter em si, gostava muito de a destacar pelas suas convicções firmes e a sua determinação em manter-se a elas. Ela tem muito boas razões para não usar os seus poderes, e por mais que seja difícil, por mais horrível que seja lidar com as visões e não poder ser capaz de confiar no próprio discernimento no que toca ao que é real ou não, ela não desiste. É preciso um tipo muito particular de força interior, e gosto mesmo dela por isso.
Quanto aos outros casais, epá, toda a gente é adorável. É uma coisa que a Marissa tem feito muito bem, fazer-nos fãs deste pessoal à primeira página e obrigar-nos a torcer por eles a cada página. (E não digo só romanticamente, na verdade, mas também quanto às relações de amizade que se estabelecem, e quanto aos objectivos que os personagens têm nesta saga.)
Achei interessante ver a Scarlet passar bastante tempo com a Winter, porque a Scarlet tem uma personalidade muito pragmática, e ser obrigada a lidar com os devaneios da Winter é um desafio para ela. Por outro lado, o Wolf, coitado do rapaz, continua a sofrer como ninguém, primeiro pela separação da Scarlet, depois por uma coisa que lhe acontece e que ele temia que viesse a acontecer. Até é daqueles detalhes que eu gostava de ver mais desenvolvidos, porque não vemos exactamente como ele se sente acerca disso, e como o vai condicionar a partir de agora.
A Cinder e o Kai sempre foram bastante fofos de acompanhar (e têm um sentido de humor partilhado que eu aprecio), mas na verdade a vida e as escolhas deles não são inteiramente livres, pelas responsabilidades que têm ou virão a ter, e o contraste entre a posição e a postura dos dois é fascinante de explorar.
O Kai passou a vida toda a ser preparado para este tipo de responsabilidade, e foi isso que guiou as suas atitudes até agora, mas neste momento em que a Levana está tão perto de ter o que queria, isso dá-lhe uma certa liberdade, e é delicioso vê-lo mandar tudo às urtigas e criar uma certa resistência passivo-agressiva para dar com a Levana em louca, e pronto, é tão divertido. Não há muito que possa fazer nas circunstâncias dele, mas ao menos pode dificultar as coisas o mais que consiga.
A Cinder, bem, até tenho um pouco de pena dela. Sempre me pareceu bastante discreta, e do tipo de pessoa que apreciaria bastante estar sossegada no canto dela, sem ninguém a aborrecê-la, mas não é isso que lhe está destinado; e ao contrário do Kai, ela não tem qualquer experiência ou preparação. As atitudes dela não vêm dum desejo concreto de melhorar Luna, nem de amar o seu, hmm, país, porque ela não conhece Luna, nunca viveu lá, nem se lembra nada daquilo.
Vêm, obviamente, de um desejo de auto-preservação - a chata da Levana continua a insistir em tentar matá-la -, mas vêm também dum lugar ideológico, de sentir que está a fazer a coisa certa, de achar que faça o que faça, de certeza que há de ser melhor que a Levana (o que não é assim tão difícil como isso) - é algo menos concreto, mais esperançoso, menos calculista e mais inocente, e por isso até gostava de ver mais momentos com ela no novo status quo, enquanto se adapta às coisas.
A Cress e o Thorne, oh céus. Adoro toda a gente, mas tenho uma ligeira preferência por estes dois. É tão fascinante contrapor a inexperiência da Cress à atitude mundana e descomplicada do Thorne; porque mesmo assim, ele está pelo beicinho, e é uma coisa que não se torna aparente até quase demasiado tarde.
Achei tão divertido ver a Cress separar-se do grupo, não pelo acontecimento em si, que foi preocupante, mas porque isso deixou o Thorne tão mal-humorado, assim num tipo de atitude quase semelhante à do Wolf sem a Scarlet. O Thorne, a amuar. Que perspectiva hilariante. (Isso e o Kai a fazer de psicólogo e a tentar pôr-lhe juízo naquela cabeça.)
Além disso, eles os dois são o casal que sofre mais com as manipulações Lunares, ao ponto de eu me pôr a gritar para o livro, tanta era a preocupação. Mas no fim, achei tão adorável a maneira como as coisas se desenvolveram, como as experiências deles mudam a sua perspectiva mais no fim, porque me dá maior confiança no futuro deles.
O livro está cheio de reviravoltas, como num jogo de xadrez, e como disse ali em cima, se o livro fosse mais curto, as coisas tinham de ser mais simplificadas, e pareceria demasiado fácil para os nossos heróis. A recta final, então, as últimas 200 páginas, foram uma tortura. Graças aos poderes Lunares, tivemos demasiados momentos de roer as unhas, e que deixavam uma pessoa na dúvida de aonde aquilo ainda ia parar.
Quanto à Levana, continua louca da cabeça, como sempre, e isso é que é cativante de observar. Ela acredita genuinamente que está a fazer o melhor para Luna e para as gentes Lunares. E que gerir as coisas com mão de ferro é a melhor maneira de avançar Luna.
A maneira como os heróis fazem a Levana perder a compostura (porque só assim para ter uma hipótese de a derrotar) é a mais óbvia e a mais simples, tendo em conta de onde ela obtém o seu poder, mas ao mesmo tempo deu-me um bocado de pena. Não é crime nenhum ser assim, como a Levana é (não falo da parte psicológica, porque aí devia ser crime ser uma psicopata), e não é o fim do mundo. Só que é o poder que a Levana dá a isso que a desfaz.
Ah, vou ter tantas saudades disto. Tive meia-dúzia de capítulos no fim a fechar a história de toda a gente, mas mesmo assim, soube-me a pouco. Quero saber o que vai ser daqui para a frente, para esta gente toda. Passei tanto tempo investida em torcer pelo futuro deles, que queria saber mais sobre esse futuro.
Para me contentar, ainda tenho felizmente um livro de contos da série, a sair em Fevereiro, se não me engano, e parece que até tem um epílogo à história, coisa que me deixa brutalmente curiosa. Era mesmo o que eu queria ler.
Páginas: 832
Editora: Feiwel & Friends (MacMillan)