segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Carve the Mark, Veronica Roth


Opinião: Esta é uma opinião que me está a dar alguma dificuldade de escrever. Tenho uma data de pensamentos, todos com vontade de saírem cá para fora primeiro, e não sei qual deles deve ter esse privilégio.

Ok, acho que já sei. Vamos começar numa nota positiva. Normalmente quando tenho coisas menos boas a dizer deito tudo cá para fora primeiro, e depois é difícil de me lembrar do que gostei. O que é que eu gostei aqui?

O facto de este ser um livro da Veronica Roth e ter algo de Rothiano que me apela sempre nos livros/histórias dela. Em parte é a maneira como ela apresenta as suas ideias, de como se lembra duma perspectiva singular para apresentar a história. Foi isso que me atraiu no Divergent, foi isso que me atraiu no seu conto nesta antologia.

O cenário, meio FC, meio fantasia. Há algo na tecelagem da narrativa que me apela por envolver coisas típicas de ambos os géneros. Gosto dos cenários mais orgânicos de onde se passa a parte principal da narrativa, mas também gosto da ideia de naves espaciais e viajar entre planetas e haver tecnologia para isso e um conselho galáctico que gere o sistema solar em que a história se passa.

Os personagens, principalmente a Cyra. Ela tem bastantes desvantagens na vida: as suas capacidades "mágicas" (currentgift), aquilo que fez a mando do irmão. Mas de certo modo, a Cyra está bastante confortável na sua pele, naquilo que é. Há uma aceitação por parte dela, um autoconhecimento pessoal que nem sempre se vê em protagonistas femininas em YA. A Cyra é uma autodidacta e esforça-se muito para que o seu currentgift não a determine. (E gosto da inversão de papéis dela e do Akos. Ela a guerreira, ele o "curandeiro" que vomita só de pensar em violência.)

A promessa de toda a coisa. Isto é uma faca de dois gumes - já explico mais à frente -, mas adorei certos pormenores da história. O modo como a current permeia a galáxia e determina um gift para toda a gente. Os vislumbres que temos de diferentes povos. O modo como as coisas são geridas por um conselho interplanetário. (E que pode não ter os melhores interesses das pessoas em mente. Veja-se o anúncio dos fates das pessoas a toda a gente no sistema.)

O modo como os currentgifts funcionam. A Cyra sente e provoca dor, o Akos interrompe a current por isso cancela os gifts de toda a gente. Há quem seja um profeta, há quem roube memórias. (O Ryzek. Adoraria que isso tivesse sido mais explorado. Há muita coisa que se lhe diga nesta sua capacidade, e aquilo que é sugerido é intrigante.)

No fim de contas, mesmo com os defeitos que percebi ao longo do livro, terminei-o completamente cativada e com vontade de continuar a ler.

Mas. (Há sempre um mas.) Pergunto-me quanto deste livro foi realmente editado. Por um editor a sério. Que tenha lido o livro e enviado de volta à Veronica e dito "ok miúda, tens de trabalhar estas cenas". Pergunto-me se ela não está a sofrer dum efeito a que vou chamar "J.K. Rowling-nite".

[A certo ponto na publicação dos livros do Harry Potter uma pessoa tinha de se perguntar se havia sequer editores a gerir o que a Jo andava a escrever, porque livros gigantes e coiso e tal. (E uma pessoa não se queixa de todo de um livro HP gigante. Mas mesmo assim. Há partes dos livros que são enrolação. Por muito que eu as ame e seria incapaz de as cortar e tal.)]

Ok. Com isto quero dizer... os editores da Veronica estão a achar que ela é demasiado grande para ser editada ou assim? Porque este livro precisava de ser editado. Big time.

Vejamos: o enredo é inconsistente no ritmo. Ora temos momentos que arrastam, ora a coisa ganha tracção e temos cenas fixes de acção. E não tenho nada contra os momentos calmos. Apenas parece-me que não foram usados na melhor forma. Podiam ser usados para enriquecer o worldbuilding e expandir certos temas e apresentar certas coisas de forma capaz e respeitosa.

Há muitas perguntas que eu tenho sobre o worldbuilding, e nem todas são da variedade "isto vai ser explicado no segundo livro". Algumas (muitas?) são mais da variedade "se isto fosse melhor explicado, o worldbuilding fazia mais sentido". Ou "se isto fosse mais expandido, o mundo descrito seria mais rico". E eu quero que seja rico! Já gosto dele. Mas gostava mais se fosse mais explícito.

E a coisa mais (ou menos, depende do leitor, suponho) óbvia... bem, outras pessoas explicaram-no muito melhor que eu. (Aqui e aqui.) Há coisas que eu apanhei, apesar de ser privilegiada, porque vou treinando o meu olho para isso. Principalmente na parte da leitura duma cultura mais tribal como os Shotet descrita como agressora e violenta, enquanto são descritos maioritariamente como POC (people of color).

Entristece-me. Uma longa linha de gente que supostamente está envolvida na publicação dum livro, e ninguém aponta para quão problemático isto é? É para isso que serve pelo menos um editor. "Er, Veronica, talvez isto não soe bem... vamos reescrever?"

Há uma série de coisas fascinantes na cultura Shotet que nada têm a ver com a parte violenta deles. Adoraria poder ter visto o misticismo deles explorado, a relação que têm com a current, e como isso influencia o seu dia-a-dia. Adoraria que começassem com o estereótipo da cultura violenta e que esse fosse negado ao longo da história, mostrando uma cultura riquíssima de outras maneiras.

Adoraria que a atitude dos Shotet em relação à violência pudesse ter sido separada do quanto eles são guiados pelo Ryzek e pela família Noavek. Há traços de uma sociedade distópica, na maneira como a elite recebe todas as benesses e os menos favorecidos são descartados, e na forma como as notícias que passam "na TV" (o equivalente deste mundo) são doutrinadas. Quanto da sociedade Shotet é realmente deles e não dos seus líderes?

E por aqui se vê que há um manancial de coisas que podia ter sido explorada, expandida. (Digo-o pela milésima vez, eu sei.) A sociedade Shotet. A sua relação com outros povos, como os Thuve. Como a current guia a galáxia. Como o conselho galáctico guia este canto do universo e que interesses são os seus. Como a troca entre o Ryzek e o Eijeh afecta as suas personalidades.

Isto é incrivelmente frustrante. Como disse ali em cima, terminei o livro com uma sensação maioritariamente positiva. Mas não sou cega às suas falhas, e quanto mais tempo passou desde a sua leitura, mais tempo tive para pensar nelas. Gosto muito da Veronica Roth, mas gostar nunca me impediu de apontar o que não gosto num favorito. Mesmo quando estou a fangirlar estou ciente das falhas, do que não resulta para mim. (Olááá Sarah J. Maas, ainda estou à espera duma boa explicação para o Rowan.)

Espero sinceramente que o segundo livro trabalhe isto. Há uma história maior e melhor à espera de ser contada, que merece ser contada. Eu quero lê-la. Já gosto deste mundo, por isso não será nada difícil manter o meu interesse.

P.S.: Esta capa é genial e creepy. Descreve uma das coisas problemáticas, mas... é bastante ominosa, e mostra essa coisa duma forma realista e figurativa ao mesmo tempo. Gosto de como o efeito resulta.

P.S.II: Oh HarperCollins, mas vocês estão parvos? Então o glossário vem no fim? Ou seja, quando eu acabo o livro e já não preciso dele, é que ele aparece. (Porque qualquer leitor vai ao fim do livro procurar estas coisas e arriscar-se a ser spoilado. Claramente.) Que estupidez. Faz todo o sentido, sem dúvida alguma.

Páginas: 480

Editora: Katherine Tegen Books (HarperCollins)

2 comentários:

  1. A minha teoria acerca dessa grande dúvida "será que este livro passou pelas mãos de um editor?" é que as editoras têm tanta pressa para lançar a coisa e para vender vender vender que fazem um edit assim na diagonal. Isto nota-se muito com livros de autores populares de YA e com as traduções... >_>

    Ouvi por aí muitas criticas a este livro, que era bastante racista e etc. Yikes. A VRoth se calhar precisa de umas férias.

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    1. E tão frustrante que isso é, grrr. Por amor da santa, se uma leitora inveterada mas leiga como eu consegue perceber que há problemas na montagem da história, um editor pago tem a obrigação de fazê-lo. As pressas dão nisto, os livros ficam mal escritos, com conteúdos questionáveis, e podem vender no início, mas o boca-a-boca também conta e os que não compraram no início desmotivam-se. Que nervos, detesto ver um trabalho mal feito. Especialmente quando a ideia-base é boa.

      O problema nem é tanto ser racista (que é), é ser thoughtless. Tivesse ela ou o editor pensado no que estavam a fazer... há partes em que ela tenta afastar a ideia Shotet=violência; tens a protagonista que abomina o que faz para o irmão, e fora do círculo interno do irmão dela as coisas parecem ser menos intensas. Mas depois tudo o que ela nos mostra é esse mesmo círculo! Ugh. É suposto haver descontentamento na sociedade Shotet contra o irmão dela, mas fora uns revolucionários de meia-tigela, ela nem mostra as pessoas normais, os pobres, os doentes, os que mais sofrem com a desigualdade e a violência. Para quem ganhou fama por escrever uma distopia, ela certamente esqueceu-se como é que se escreve elementos duma. -.-

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