Opinião: Mais um bom exemplo do porquê de eu ler poucas antologias. Claro, são uma boa maneira de conhecer novos autores e manter um ou outro debaixo de olho. (Aconteceu-me isso aqui, definitivamente.) Mas também são tão inconstantes que eu saio sempre da leitura algo insatisfeita. Como habitual, encontrei algumas histórias muito boas, outras assim-assim, e uma em particular que me irritou sobremaneira (e ainda outra que me deixou dividida).
O tema da antologia é a vilania, fazendo-nos deliciar com vários tipos e sabores de vilania, alguns fazendo-nos questionar a sua natureza, alguns nem sendo bem sobre vilania, outros mostrando que, nas circunstâncias certas, todos podemos chegar lá.
É uma premissa interessante, suportada pelo artifício de ter a colaboração de BookTubers conhecidos, que sugeriram as premissas sobre as quais os autores escreveram, e contribuem com mini-ensaios a comentar os contos. Julgo que houve uma pequena polémica quando isto foi anunciado, porque "havia tanta gente a lutar para ser publicado, e estes tipos (os BookTubers) tinham tudo de mão beijada", o que é hilariante e estúpido em retrospectiva. E doseado com uma boa quota de inveja feiinha que não fica bem a ninguém.
Primeiro, porque se estava a ignorar que, er, ter um canal do YouTube dá trabalho como o raio. Eu já tenho o trabalho que tenho aqui, imagine-se ter de me vestir noutra coisa que não um pijama, filmar-me a discorrer sobre um livro, e ainda ter de editar o bicho? Raios, não. Nem pensar. Depois, porque a natureza da participação deste pessoal, é muito mais no sentido do fã do que do escritor: dão uma sugestão, o escritor escreve, eles comentam e opinam com um texto curto. Não se parece nada com ter algo nosso escrito e publicado.
Por fim, algum deste pessoal tem aspirações a escritor, sim, mas vemos algum deles com um contrato na mão, à data em que escrevo? Não. Não funciona assim. (E a Sasha não conta porque o livro que ela vai publicar com a Lindsay Cummings foi pensado e auto-publicado numa cronologia muito diferente deste, e teve um percurso público bastante diferenciado.)
Anyway. Antes de passarmos aos contos, julgo que merece a pena comentar a participação dos YouTubers em si. Para ser honesta, na maioria não adicionam nada aos contos que acompanham. Os mini-ensaios podem até ser giros ou interessantes, mas eu consigo pensar por mim própria, obrigado, e na maior parte são mais uma análise do que lemos que outra coisa. Preferia que fossem um bocadinho mais pessoais.
Oh, e a premissa não podia ter sido colocada antes do conto? Parece-me estúpido só descobrir qual foi o desafio depois do conto, não antes, para poder avaliar quão bem sucedido foi. Por outro lado, sinto que realmente esta é uma oportunidade perdida para os YouTubers, gostava que pudessem ter mostrado mais os seus talentos na escrita.
Passemos aos contos. Vai ser longo.
The Blood of Imuriv, Renée Ahdieh: dá para perceber porque as pessoas gostam da autora. Ela escreve bem, é lírica, evocativa, produz a sensação de tragédia. O worldbuilding é fascinante, e leria um livro neste mundo. Mas o vilão é fraco: um bebé grande que tem ciúmes da irmã e tem problemas de raiva? Não é nada interessante, nem inovador. É bastante cliché.
Colaboração de Christine Riccio: um texto cómico sobre sinais de vilania e vacinar-se contra isso. Mais ou menos divertido, mas a Christine é bem mais hilariante no seu canal, por isso sei que ela é capaz de melhor.
Jack, Ameriie: este é fantástico. Um recontar de João e o Pé de Feijão, pelo ponto de vista da gigante filha do gigante que consta no conto. É muito cativante e envolvente, o POV dela, a maneira como se dá com o Jack, coloca-nos na cabeça dela duma forma perfeita. O que torna o twist final mais genial, porque é totalmente inesperado, mas ainda assim adequado e encaixando com as palavras da protagonista que lemos algumas páginas antes.
Colaboração de Tina Burke: curto, mas dos ensaios mais inteligentes e articulados do livro, e por isso a sua avaliação do conto leva a minha aprovação.
Gwen and Art and Lance, Soman Chainani: contado apenas em SMS e DM, o que é giro e funciona maioritariamente bem, apesar de eu desejar poder ler uma história mais longa com esta premissa, que é muito boa (lenda arturiana cruza-se com Hades e Persephone). O papel de vilão é praticamente inexistente: não é o Lance, que fica com a miúda debaixo do nariz do amigo, porque eles nunca foram um casal, e não é certamente a Gwen, que é apenas uma miúda a tentar perceber o que quer e a fazer um monte de asneiras pelo caminho. (Coisas nada boas, sim, mas não fazem dela uma vilã.) Gosto do entrosamento com o mito grego, porque os papéis de Hades e Persephone não são assim tão lineares, e dão uma autodeterminação à Persephone. Mas gostava que o conto fosse mais longo e elaborado, mais preenchido. Eu quero é caracterização de personagens.
Colaboração de Samantha Lane: em estilo social media, uma avaliação de vários papéis e perfis de vilões, mostrando como se enquadram no conto e na mitologia/lendas originais. Giro.
Shirley & Jim, Susan Dennard: um recontar Sherlockiano moderno, com uma carta de Shirley Holmes (pergunto-me se a Susan era fã da série de TV com o mesmo nome) para a sua amiga Jean Watson, a explicar como conheceu James Moriarty no colégio interno que todos frequentam, como se encantou por ele, como ele lhe mostrou uma perspectiva diferente, como ela sempre teve a sensação que ele ia fazer algo terrível e como foi manipulada nesse processo. O fim é giro porque prepara a história para a grande e histórica rivalidade. Gostei bastante.
Contribuição de Sasha Alsberg: uma coluna "Querida ...", mas para aspirantes a vilões. Gira mas nada memorável.
The Blessing of Little Wants, Sarah Enni: brilhante, genial, maravilhoso. Num mundo Harry Potter-like, a magia é finita e está a desaparecer. Os feiticeiros com grande capacidade mágica vêm a mesma mutilada, açaimada. A protagonista e o seu melhor amigo são dois feiticeiros poderosos que o escondem por essa razão, e que se lançam à aventura para tentar recuperar a magia para o mundo. Adorei o worldbuilding, adoraria ler mais sobre este mundo. A escrita é lírica e evocativa. A reviravolta final é fantástica (algo óbvia, porque adivinhei antes de tempo): a Sigrid é vilã pelas suas escolhas, independentemente dos resultados das suas acções. Um dos poucos que nos faz questionar se não faríamos o mesmo, especialmente se significasse salvar o mundo.
Colaboração de Sophia Lee: uma avaliação do conto certeira e inteligente. Caiu-me bem porque vai de encontro à minha opinião.
The Sea Witch, Marissa Meyer: um excelente exemplo do porquê de adorarmos a Marissa. Um recontar da história da bruxa n'A Sereiazinha, que encontra a mesma escolha da sereia, mas escolhe de forma diferente. Escrito de forma empática, é difícil não nos compadecermos com Nerit, que deseja ser amada e sentir-se integrada, sentimento que é universal. A sua solidão é entristecedora, e é constantemente injustiçada pelos homens na sua vida, o que faz entender as suas acções; apesar de tudo, as suas escolhas são moralmente erradas. Mas é recompensador vê-la ter a sua vingança e sentir-se à vontade na sua pele.
Colaboração de Zoë Herdt: ensaio mais pessoal sobre as escolhas de um vilão, mas passava bem sem o teste sobre se somos heróis ou vilões.
Beautiful Venom, Cindy Pon: este divide-me. É brilhante e estúpido ao mesmo tempo. Um recontar da Medusa num cenário asiático: uma jovem é escolhida pelo imperador para ser a próxima concubina, mas é perseguida por um deus, que a força. Depois vem a deusa da pureza, que a transforma num monstro por "não ter dito que não". Ai... eu queria gostar. Tem sentido de humor, a protagonista parece ter profundidade, a escrita é gira. Contudo. Sei que a autora escreveu isto como forma de criticar a mentalidade da sociedade de culpar as vítimas de violação, e nesse aspecto os deuses desta panteão são os verdadeiros vilões, e a mensagem é boa. Mas está escrito duma forma muito ambígua, dando-me a sensação que outra pessoa podia ler isto e ver o conto como apoiando essa mentalidade. Especialmente porque no fim a protagonista é transformada na vilã, num monstro, e tudo o que lhe acontece não parte das suas escolhas. O conto torna-a numa vítima também, essencialmente violando o seu carácter. Assim que é transformada num monstro, a forma como pensa é deformada, e tudo o que faz como "Medusa" não é a Mei Du que conhecemos. A sério, apenas uma ligeira mudança de tom podia corrigir isto, e é o que mais me frustra.
Contribuição de Benjamin Alderson: o enquadramento que o conto precisava, e só por isso já merece o meu reconhecimento. Tem bons pontos e bom enquadramento.
Death Knell, Victoria Schwab: uma escrita difícil de penetrar ao início, quebrada e estranha, mas cativante e lírica. A Morte acorda no fundo de um poço, com fome, sabendo que está na hora de acompanhar mais alguém nos seus últimos momentos. Essa pessoa passa um dia com a Morte, mostrando-lhe pequenos momentos do que é ser humano. No fim tenta um truque muito interessante, e gosto de como termina.
Contribuição de Jesse George: Uma carta pessoal à morte, mais tocante por isso, com algumas referências ao conto.
Marigold, Samantha Shannon: na Inglaterra do século XIX, os erl-folk mantêm uma trégua com a rainha - na esteira da Revolução Industrial, eles ficaram com o domínio sobre a floresta. Começam a desaparecer crianças e jovens do sexo feminino, e quando levam Marigold, dois jovens relacionados com ela partem à aventura para a trazer de volta. Um bom conto com uma reviravolta que questiona no fim quem é o vilão, quem precisa de ser salvo, e que faz um comentário ao papel da mulher na época vitoriana.
Contribuição de Regan Perusse: bom ensaio, comentário ao conto e que vai de encontro à minha opinião.
You, You, It's All About You, Adam Silvera: um pouco críptico, mas com um worldbuilding interessante. Uma narração curiosa, com uma protagonista jovem mas impiedosa e impressionante - que esconde algo, e a reviravolta é fantástica. A coisa da máscara, no entanto, é bizarra. Uma máscara feita de uma mão? Não faço ideia de como é que isso funcionaria. (Oh, mas o uso da segunda pessoa na narração é fabuloso.)
Contribuição de Catriona Feeney: avaliação do simbolismo da máscara, giro mas demasiado curto, e a análise da máscara que se usa é dispensável.
Julian Breaks Every Rule, Andrew Smith: ok, para já este é o único conto do livro que eu activamente fiquei a odiar. Para já pela escrita. Detesto quando escrevem estes protagonistas todos "preciosos", uns floquinhos de neve super-especiais. Depois, detesto este tipo de escrita pretensiosa, cheia de si, que quer parecer mais inteligente que é - o protagonista passa o tempo a dizer "ei, isto é foreshadowing". Ugh. FORESHADOWING NÃO É REPETI-LO A CADA DUAS PÁGINAS, não nós somos burros, thank you very much, não precisamos que seja anunciado. Detesto autores que escrevem como se o leitor fosse burro. Por fim, vi alguns comentários do Goodreads sobre como isto é divertido (não é, de todo), e como tem várias camadas e é inteligente e uma boa caracterização dum psicopata. Talvez eu tenha perdido alguma coisa? Porque não me parece. Parece-me um puto adolescente normal, choninhas, desinteressado. Nunca emite uma vibração arrepiante, nunca tem uma atitude que me desse vontade de colocar distância entre mim e esta pessoa. Ele convence-se que consegue matar pessoas com o pensamento porque teve algum problema com elas e de seguida aparecem mortas com acidentes estranhos... por um lado, parece-me o tipo de ansiedade adolescente normal, por outro é uma ideia parva. Seria muito mais interessante se o autor aumentasse a creepyness do personagem e desse pistas que o protagonista tinha tido mão nesses acidentes - e talvez fosse essa a ideia do autor, mas se foi, foi demasiado subtil para se perceber, e por isso não foi bem sucedido. Seria incrivelmente mais interessante se víssemos que o miúdo tem a cabeça revirada e estava em negação sobre tê-lo feito. O fim não é uma surpresa, e nem é recompensador, porque ele finalmente toma as coisas nas suas mãos, mas com tanto mimimi sobre foreshadowing qualquer tipo de revelação não é surpreendente ou interessante. Oh, e não cumpriu a premissa, que passava por um cenário futurista. Pseudo-poderes psíquicos não contam.
Contribuição de Raeleen Lemay: sobre porque gostamos de psicopatas. Again, percebeu mais que eu? Diz que releu e obteve mais coisas das releituras. Eu reli rapidamente e fiquei na mesma. Se tem segunda camada, tem que ser mais óbvio, eu normalmente sou boa a ler nas entrelinhas, por isso... é demasiado subtil. E por isso não foi uma contribuição que me agradou, porque babar para um conto que eu detestei não me caiu bem.
Indigo and Shade, April Genevieve Tucholke: um ligeiro retelling de A Bela e o Monstro, pelo ponto de vista do Gaston. O que é hilariante de ler, porque ele é tão cheio de si, tão convencido e tão bom caçador e bom a tudo, que até dá vontade de lhe bater. Mas é realista - é um protótipo do Gaston que estamos a ler. Na cidade dos EUA de influência francesa onde vive, no meio das montanhas, uma Besta começa a atacar e corpos aparecem pela floresta. O "Gaston" quer saber o que se passa, mas pelo meio deixa-se cativar por uma moça, Indigo Beau (eh, "Beau"), leitora inveterada, bonita, e que gosta de passar horas na floresta. Termina depressa, e a reviravolta foi um bocadinho óbvia, porque já li demasiadas coisas que seguem esta linha de pensamento.
Contribuição de Whitney Atkinson: um bom ensaio, muito interessante, que decompõe um personagem como o Gaston, que é um menino bonito e brilhante e espera que o mundo se deite a seus pés.
Sera, Nicola Yoon: muito arrepiante. Começamos no dia presente, em que uma jovem parece estar no centro de uma explosão de violência, sem aparentemente a causar, bastando a sua presença. Depois percorremos o seu passado pelos olhos da sua mãe, que a tenta amar... mas Sera sempre foi diferente, sempre houve algo de errado com ela que a mãe não queria admitir. Ao crescer tem atitudes arrepiantes, nada infantis, e está sempre no centro de morte e desastre. É impressionante pelo conceito de um bebé nascer mau, no sentido em que a sua própria natureza influencia os demais à sua volta. Gostei.
Contribuição de Steph Sinclair e Kat Kennedy: é um pouco genérico, parecendo o tipo de artigo que apareceria numa revista feminina, e gosto de como estas meninas opinam, por isso sabe a muito pouco. Queria ver mais delas. Mas é divertido, giro, cheio de girl power, sobre como ser uma vilã assertiva, mas que pode ser extrapolado para qualquer mulher
Comentários finais:
Favoritos: Jack, Ameriie; Shirley & Jim, Susan Dennard; The Blessing of Little Wants, Sarah Enni; The Sea Witch, Marissa Meyer; Marigold, Samantha Shannon; Sera, Nicola Yoon
Detestei com a fúria de mil sóis: Julian Breaks Every Rule, Andrew Smith
Boas contribuições: Tina Burke, Samantha Lane, Sophia Lee, Benjamin Alderson, Regan Perusse, Whitney Atkinson
Páginas: 368
Editora: Bloomsbury