sábado, 24 de janeiro de 2015

Uma imagem vale mil palavras: no caminho para os Óscares...

... e nem assim deixo de ver no grande ecrã maioritariamente filmes baseados/inspirados em livros. A imaginação deve andar pelas ruas da amargura em Hollywood. Por exemplo, hoje fui ver o Sniper Americano (baseado em livro), e os trailers foram dos filmes (dum dum dum dum) Vício Intrínseco (livro de Thomas Pynchon, e já agora, aquele trailer estava uma confusão), O Grande Mortdecai (parece que também é um livro, ou série de livros), e A Teoria de Tudo (também inspirado num livro/biografia pela primeira esposa do Stephen Hawking, Jane Hawking).

Portanto, nem na época dos prémios cinematográficos eu me safo de ver uma data de filmes que tem origem no meu território, que são os livros. Hmmm. É que eu nem faço de propósito, com algumas óbvias excepções, mas acabo por ver tantos filmes cuja origem está no mundo literário. Ou uma grande parte da oferta de filmes hoje em dia tem origem nesta outra arte, ou simplesmente aqueles filmes baseados/inspirados em livros são os acabam por me chamar a atenção, sabe-se lá porquê.

Adiante. Este meu texto de hoje tem como propósito comentar e opor dois filmes que encaixam em ambas as categorias: filmes baseados/inspirados em livros (que é o propósito desta rubrica), e filmes nomeados para os Óscares. E que ainda partilham um terceiro aspecto: tenho uma opinião diametralmente oposta à maneira como contam a sua história, e prefiro/preferiria mesmo que tomem/tomassem uma abordagem distinta no modo como contam a sua história.

Primeiro temos O Jogo da Imitação (The Imitation Game), inspirado na biografia de Andrew Hodges, Alan Turing: The Enigma. É um bom filme. Dá uma perspectiva diferente da 2ª Guerra Mundial, de coisas que estavam a ser feitas pelos Aliados para ganhar a guerra, e com as quais muita gente não estará familiarizada.

Também faz um bom serviço ao permitir à audiência conhecer Alan Turing, um homem que parece ter sido pioneiro na sua área, o que só enfatiza como é trágico que tenha morrido ingloriamente, mal tratado por um país que lhe devia pelo menos o seu trabalho durante a guerra, ao abrigo duma lei que é incrível que ainda existisse nos anos 50.

O meu problema aqui com a história de The Imitation Game - e reconheço que ignorando isso, até acaba por ser uma boa história, dramática q.b, com bom ritmo - é que antes de ver o filme, já lido algumas coisas sobre os exageros dramáticos, isto é, sobre as liberdades criativas tomadas que não reflectem o que realmente aconteceu...

... e senti que na maior parte dos casos, não era necessário terem sido tomadas. Por exemplo, o rapazinho que na equipa de criptógrafos tem um irmão num local que vai ser atacado pelos Alemães, ataque esse que a equipa acabou de descobrir ao perceber finalmente como é que a Enigma funciona - completamente inútil.

A discussão sobre quem tem direito de fazer de Deus podia funcionar à mesma se ficasse no plano abstracto, e como ocorre no filme até afasta a atenção dum ponto importante - nunca estas pessoas poderiam decidir sobre o curso de acção a tomar: esse ficaria para as altas patentes.

Toda a aura de génio incompreendido, aluado e antissocial é um pouco exagerada, e começa a tornar-se cliché, por termos demasiados meios de entretenimento demasiado obcecados com essa "imagem". Não pode um homem ser um génio e dar-se bem com os que os rodeiam? Porque é que precisamos de endeusar os "génios"? São pessoas como todas as outras, não são bichos-do-mato, nem bichos raros, caramba.

Além disso, a leitura do personagem e do homem em questão como génio excêntrico acaba por soar mal associado à sua homossexualidade. Quase que parece transmitir a ideia de que os que caem um pouco fora da "normalidade" são homossexuais, ou pior, que os homossexuais caem fora da normalidade.

De qualquer modo, o exagero do génio incompreendido leva a outro problema na história, que é o antagonismo pelos que o rodeiam. O que debilita aquilo que aconteceu na vida real, que o trabalho de criptografia em Bletchley Park parece ter sido um trabalho de equipa, de muitos a contribuir para o mesmo.

Compreendo o foco em Alan Turing, que sim, foi crucial para este trabalho, mas o antagonismo no filme com os colegas e superiores militares só acaba por fazer esquecer que o verdadeiro antagonista para estas pessoas era o lado alemão da guerra, e que estavam todos a remar para o mesmo lado.

Portanto, acho que o que pediria aqui era que tivessem inventado menos com a biografia de Alan Turing, pois acredito que podia ter sido um bom filme à mesma, igualmente dramático, com o mesmo objectivo, com as mesmas ideias, e possivelmente usando muitas das mesmas cenas, apenas usando um foco ligeiramente diferente.

Saber antecipadamente que muitas daquelas coisas foram "elaboradas criativamente" roubou-me o gosto que teria tido com a história; o que não é propriamente culpa do filme, eu sei; e volto a reconhecer, se isto fosse apenas uma ficção, eu teria gostado bastante e ficado satisfeita com a maneira como as coisas foram narradas.

O contraponto a esta perspectiva é Sniper Americano. Prefiro bastante que o filme tenha tomado liberdades criativas (o protagonista Chris Kyle, na vida real, parece ter sido menos heróico e um pouco mais idiota). Acho que podia ter sido feito mais em certas partes, mas reconheço que já faz um trabalho interessante ao mostrar o dia-a-dia de alguém que estaria no Iraque nos primeiros anos do conflito armado.

E apesar de haver um foco grande no dia-a-dia violento da vida de Chris lá, não o senti como glorificação da violência. Há quem o vá fazer, imagino, mas o filme mostra claramente que as acções têm consequências, que homens morrem lá todos os dias, dum lado e doutro, e que esta exposição constante a um cenário violento modifica Chris, causando-lhe problemas a nivel mental, e impedindo-o de conseguir viver uma vida "normal", quando está de volta aos Estados Unidos.

Sim, há uma mentalidade de "eles contra nós", que é bastante problemático, e o foco em dois antagonistas dá cara à violência praticada por muitos como eles, mas também dá cara à violência praticada pelos soldados americanos. Não sabemos muito sobre os antagonistas, mas são pessoas, em vez de vultos abatidos sem pensar duas vezes pelos soldados.

Aquilo que eu disse ali em cima sobre achar que podia ter sido feito mais... há uma coisa no mundo literário que passamos a vida a repetir, sobre show, don't tell, e sinto que o filme fez o equivalente de tell em certos pontos cruciais. Diz-nos que a guerra tem efeitos nestes soldados, nesta geração de jovens que foi servir o seu país e acabou destruída, de certo modo. Diz-nos que o Chris está afectado pelo seu trabalho como sniper, que a violência no Iraque condiciona a sua vivência nos EUA, e que lhe é difícil reintegrar-se.

E pronto, isto é-nos apresentado em poucas e curtas cenas, que não conseguem construir uma narrativa coesa que apresente estes pontos ao espectador. O estado mental dos soldados no Iraque podia ser tão mais desenvolvido (até porque viria a ter importância no desenrolar do final, numa espécie de ironia trágica), e o melhor exemplo que posso dar disto é uma cena em que Chris e a sua unidade entram à força numa casa e acabam a jantar lá.

Mentalmente, estava a comparar essa cena a uma semelhante em Fúria, um filme que saiu o ano passado, que ocorre no fim da 2ª Guerra Mundial, durante a tomada da Alemanha, e que acompanha uma unidade de soldados que tripulam um tanque. Na cena em questão, bastante impressiontante, sob a aparência de civilidade vemos o quão aqueles homens estão destruídos, psicologicamente, mentalmente, espiritualmente, e como seria lhes seria difícil voltarem à vida civil. Não encontrei nada de parecido em Sniper Americano.

Do mesmo modo, quando Chris volta finalmente para os EUA, temos uma série de cenas soltas que querem estabelecer que lhe foi difícil voltar à vida civil, mas que conseguiu de certo modo curar-se e refazer a sua vida. Não senti que contassem uma narrativa, algo que puxasse a audiência a empenhar-se na quebra mental de Chris, em como a guerra o tinha mudado e como isso o impedia de reintegrar, até que ajudar outros veteranos o ajudou a si e lhe permitiu reestabelecer-se.

Acho que esta narrativa final teria dado mais significado a uma certa revelação final que o filme apresenta, e que foi como um murro no estômago. (Para quem não sabia o que acontecera, como eu, isto é.) Foi algo impressionante, mas por outro lado, senti-o como uma manipulação emocional fácil, por puxar ao choque, e que podia ter mais contexto e sentido se a narrativa que mencionei no parágrafo anterior tivesse sido contada.

Acho que o problema é que o filme é muito factual (apesar de mexer um pouco com os factos, creio eu), e pouco emocional. É uma escolha dos criadores, de facto, e uma válida, mas na minha opinião, não enriquece a história contada. Teria sido uma boa oportunidade para availiar como a guerra destrói as pessoas, numa altura em que a guerra no Iraque está tão fresca, e toda a gente ainda tem demasiado medo de criticar ou questionar este conflito armado.

Percebi ainda mais um par de coisas que os filmes têm em comum: são biopics, e o foco no indivíduo retratado acaba por resultar no detrimento da imagem geral que os rodeia, e na incapacidade em reflectir no que os rodeia, quando é um assunto com tanto para explorar.

4 comentários:

  1. Também já tinha reparado que este ano há bastantes filmes baseados em livros... e eu quero vê-los quase todos!

    Estes dois que falaste são dois deles, vais ver mais algum? A Teoria de tudo é muito bom ;)

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    1. É uma desgraça! E agora é todos os anos, quase... há dois anos, a única razão pela qual tinha visto grande parte dos filmes que tinham pelo menos uma nomeação era porque sobrepunham com algumas adaptações. :S

      Eu quero ver A Teoria de Tudo, sim, gosto bastante dos dois actores principais, e estou supercuriosa acerca do desempenho deles. ^_^ Fora isso, estou na dúvida acerca do Birdman, que parece meio interessante, mas não sei se encaixa com o meu humor... e a minha mana falou de irmos ver o Boyhood ou o Foxcatcher, a ver se ainda apanhamos nos cinemas. :)

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  2. Estou mesmo curiosa quanto ao The Imitation Game, apesar que fiquei um bocado reticente agora :S

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    1. Vai ver sem problemas, apesar de tudo, é uma boa história, definitivamente. Apenas não faças como eu, que me pus a ler um par de artigos que apontavam as incorrecções históricas antes de ver o filme, porque me foi extremamente difícil desligar a vozinha resmungona e crítica, que se lembrava dos artigos, durante a visualização do filme. xD Porque tentando ignorá-la e sendo imparcial, tem tudo para ser uma boa história e fazer valer a pena aquelas duas horas em frente ao ecrã. Eu senti que valeu a pena, apesar de tudo. :)

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