sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Onde Estás, Audrey?, Sophie Kinsella


Opinião: Sophie, estás perdoada. Há muitos anos atrás, a minha irmã comprava os livros da Shopaholic em português, e eu lia depois dela. Acho que aguentei dois. Até era bastante divertido ler as peripécias da Becky, mas depois a autora passava um limite para além do qual a pancada da Becky era doentia, e era dolorosa de ver. Especialmente porque ela nunca aprendia com os erros. E isso para mim não era nada interessante, era cansativo de ler. E por isso, desisti, apesar de até me divertir na maioria com os livros em si.

Pois bem, tenho de lhe tirar o chapéu: a Sophie aqui faz um excelente trabalho em apresentar um problema, uma doença mental, sem ser desrespeitosa nem pateta, sendo credível, e ao mesmo tempo mantendo a levidade que caracteriza a sua escrita. (E da qual honestamente já tinha saudades.)

A Audrey é uma jovem adolescente que à medida que a narrativa avança, nos damos conta que vive quase reclusa, só contactando com a família. Pois a Audrey tem uma ansiedade extrema no que toca a sair de casa, e contactar com estranhos; algo que evoluiu a partir de um episódio de bullying no seu passado que chegou a um extremo tal que ela foi hospitalizada com uma crise e as miúdas responsáveis expulsas da escola.

A situação nunca é explorada; só descobrimos os contornos dela e a sua importância para o estado presente da Audrey - mas lá está, o passado não precisa de ser detalhado para compreendermos a sua situação actual, nos identificarmos com ela e entendermos o que a move. (Ou não move.) E tenho a dizer que a autora faz um trabalho fantástico a desenvolver esta situação. Sim, a Audrey vive em família e interage com eles, mas não se intromete nos conflitos, é mais uma observadora em muitas das interacções familiares... e para ela, chega. Não lhe é possível envolver-se mais. O contacto humano, é-lhe impossível.

E ainda assim, a Sophie consegue dar um tom de leveza à narrativa. A família da Audrey é como todas as famílias: um pouco disfuncional, cheia de dramas familiares e idiossincrasias particulares, mas todos se adoram, e todos adoram a Audrey e querem que fique melhor. Torna-se claro que toda a família mudou um pouco com aquilo que a Audrey passou; mas ainda são uma família, e ainda têm as suas questiúnculas.

Por favor, toda a saga da mãe da Audrey contra os videojogos que o Frank, o irmão joga? Hilariante. A situação escala duma maneira brutal, e a autora consegue descrever dum modo que nunca exagera. As minhas partes favoritas passam pelo jantar dos pais, em que eles vão sair e o Frank devia fazer os trabalhos de casa, mas simplesmente continua a jogar, e é apanhado duma maneira épica; e a cena da destruição do computador, que abre na verdade o livro. Céus, estou-me a rir só de me lembrar disso.

E depois tenho de mencionar o Linus. Não é uma daquelas situações "o amor salva tudo", porque isso não é verdade, e não faria sentido no contexto da história. Mas gosto de como a Sophie o apresenta: é um amigo do Frank, e a Audrey está ciente dele, e talvez por ser amigo do Frank, é mais seguro interagir com ele do que se arriscar ao contacto com alguém fora de casa.

E o Linus cruza-se com ela lá em casa, e bem, é difícil para ela começar a contactar com outros para além da família, mas vejo o Linus mais como o mote, o motivo de interesse que a faz começar a querer sair da concha em que se encerrou. É algo que a própria Audrey acaba por procurar sem se dar conta.

O próprio Linus é adorável. Não nasce ensinado, e por isso há partes da doença da Audrey que ele não compreende, mas o mais importante? Ele interessa-se, e está disposto a aprender. O que é que funciona para ela, e como comunicar com ela, mesmo que seja da forma mais simples e remota que há. Ele interessa-se, e preocupa-se, e desafia-a a superar-se, e não, isso não resolve os problemas da Audrey. Mas sentir-se amada pelos que a rodeiam é um bom passo na direcção correcta, e uma ajuda para se sentir mais confortável na sua pele.

Gosto da evolução da própria Audrey. De nenhum contacto a aceitar lentamente aproximar-se dos outros, de viver a vida como uma testemunha a passar a envolver-se. Ajuda, por exemplo, que a psiquiatra lhe sugira fazer filmagens da família, do que a rodeia, como uma forma de a levar a envolver-se. E resulta, em parte. As filmagens são das minhas cenas favoritas.

Também gosto que a evolução dela tenha altos e baixos, como é reconhecido no próprio livro. Não é uma escalada até ao tipo; às vezes as coisas correm menos bem. E no caso da recaída da Audrey, gosto que não tenha chegado ao extremo (finalmente aprendemos subtileza, Sophie), nem sempre a vida cai no mais dramático que pode haver, e gosto que haja um reconhecimento da importância da medicação (e de deixar de a tomar) na evolução da Audrey.

[No último livro que li que tinha alguém com uma doença mental, o autor escreve a personagem como "yah, miúdos! não tomem os medicamentos! eles matam a vossa personalidade!", sem mostrar o quão perigoso isso é. Ugh. Que irresponsável. Portanto, pontos bónus, Sophie.]

Portanto, parabéns, Sophie Kinsella. Já não estás banida das minhas estantes. Ainda não morro de vontade de voltar a ler a Louca por Compras, porque aquilo era demais; mas talvez um dia venha a ler outros livros dela. Gostei muito (e tinha saudades) do humor doido dela, e gostei mesmo de como retratou uma fatia da vida de uma personagem com um problema, e como ela evolui ao longo da história em relação a esse problema.

Nota: nada a apontar na tradução. Diria até que é boa. Talvez destaque o uso de termos demasiado tradicionalmente portugueses? Exemplo, usam ali pelo meio a expressão "algaraviada", e como toda a atmosfera do livro para mim é bastante inglesa, soou-me... estranho.

Título original: Finding Audrey (2015)

Páginas: 272

Editora: Porto Editora

Tradução: Paulo M. Morais

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