sábado, 18 de março de 2017

Wintersong, S. Jae-Jones


Opinião: A Bela e o Monstro. Os mitos gregos de Hades e Perséfone, de Orfeu e Euridice, de Psique e Eros. O Capuchinho Vermelho. Der Erlkönig. Goblin Market de Christina Rossetti e The Phantom of the Opera e Jane Eyre. Amadeus e Nannerl Mozart. Romantismo e goticismo. Os tons sombrios e sensuais de autoras como Jacqueline Carey e Anne Bishop.

Estas são algumas das influências, implícitas ou admitidas pela autora, deste livro. E isso pode ser a razão pela qual ele me caiu tão bem. Não a única, claro. Mas a panóplia de referências que ela tem aqui? Um sonho, e contendo tanta coisa com que me identifico que era muito difícil que um livro que as use acabasse a desgostar-me.

Não quero com isto dizer que a história tem falta de originalidade, ou se agarra às referências que tem. É mais como pegasse nos temas e em elementos destas histórias/influências, os colocasse numa caixa de areia, e brincasse com eles a seu bel-prazer, tentando adicionar algo de novo a eles e criando uma história cativante, sombria e encantadora sobre uma jovem que tem o seu momento coming of age entre as páginas deste livro, um acordar de atitude e personalidade, mas também sexual e de afirmação, de descoberta e aceitação e entendimento das suas capacidades.

Liesl é a irmã mais velha de três na Bavária do século XIX. Liesl considera-se a menos interessante, a menos bonita (a Kathë é a beleza da família), a menos talentosa (o Josef é o músico inspirado, transcendental). Sente que cai nos seus ombros manter a família unida: não são particularmente abonados, o pai bebe demais, agarrado a glórias musicais passadas. Em suma, Liesl apagou-se para manter o barco à tona: o que ela quer e sonha não interessa, desde que todos estejam bem e felizes.

E isto é o verdadeiro drama da história: Liesl é uma mulher do século XIX, em que não interessava se fosse capaz ou talentosa; nunca seria um homem, e estaria destinada à vida caseira. O que é tão trágico no caso dela; ler certas passagens do livro é impressionante pela paixão que transmitem pela arte da música. Liesl ama compor, mas cedo lhe foi incutido que era uma mulher, e que qualquer coisa que produzisse era, por essa definição, menor. Uma lição enterrada e bem entranhada, muito difícil de desfazer.

Não é fácil gostar da Liesl. Este condicionamento e a situação da família não faz dela uma pessoa caridosa ou carinhosa. Passam-lhe pela cabeça algumas coisas maldosas, especialmente acerca da irmã. A auto-estima está em baixo, por isso também não é propriamente simpática acerca de si mesma.

E ainda assim, a Liesl é leal, e quando a irmã é levada pelo Goblin King, ela luta com unhas e dentes para recuperá-la. Esta parte da narrativa é bastante interessante porque explora a relação entre as irmãs, e porque faz a Liesl aperceber-se do pouco crédito que dá à Kathë.

Esta parte da narrativa abre caminho para a segunda parte, sobre a estadia da Liesl no reino Goblin. Provavelmente não vai resultar para quem não seja fã da protagonista, mas como adorei o seu feitio torto, gostei de a ver nesta parte. Essencialmente, ela debate-se com libertar-se das expectativas do mundo e dela própria sobre o seu papel nele.

É uma parte que também expande a sua relação com o Goblin King, e com a sua música; e o tempo que passa no reino permite-lhe crescer e libertar-se, aceitar-se e entender os seus desejos e quereres. É uma parte fascinante de acompanhar pela relação espinhosa e complexa que partilham, pela exploração da criação artística, e pelo entendimento a que chegam.

Esta é a parte que é capaz de perder um bocadinho com a maneira como o livro foi preparado para a publicação. Ao que compreendo, a autora escreveu originalmente uma história ainda mais madura e sombria, com conteúdo sexual intenso. Sei que os editores andaram para a frente e para trás em relação a como fazer o marketing do mesmo: adulto ou YA? No fim, decidiram-se por YA e sei que adaptaram certas partes, tornando o conteúdo menos explícito e carnal.

Não é que as cenas estejam mal escritas ou que a adaptação tenha dado cabo do livro ou seja má, mas... suspeito que é o tipo de história que seria ainda melhor se tivesse ficado no lado adulto da coisa. Algo à moda da Anne Bishop ou da Jacqueline Carey parece-me perfeito para o tipo de história que estava aqui a ser contada, e tenho pena de não poder ver isso. Acho que trabalharia os paralelos com alguns contos ainda melhor.

A parte final é incrivelmente fascinante de considerar. Se acaba bem ou mal depende da pessoa que lê, mas é uma resolução ao dilema bastante realista. Madura. Teria dado cabo do meu coração, se eu não soubesse que haverá uma sequela. Mas como está, e sabendo isso, deixa-me muito animada para continuar e ver revelado mais acerca do mundo Goblin e da mitologia do Goblin King - o que vislumbramos é intrigante.

E pronto. Não é uma história perfeita, mas é criada e escrita duma maneira cuidada, lírica e considerada. Acho que a escrita da autora a pode levar longe. Tem um peso que fica na memória. E as coisas que aborda estão no meu imaginário, e isso foi um bom passo para eu me deixar cativar, em adição a abordar assuntos que me interessam. Não é certamente para todos os gostos, mas promete encantar inteiramente quem para aí esteja virado.

Páginas: 448

Editora: Thomas Dunne Books (St. Martin's Press)

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