sábado, 21 de março de 2015

A Cada Dia, David Levithan


Opinião: Não me parece que este livro vá deixar alguém indiferente. A sua premissa única garante-o, nem que seja porque nos obriga a pensar sobre género e atracção de maneiras que geralmente não consideramos. Independentemente da nossa opinião pessoal, David Levithan faz-nos questionar as etiquetas e classificações que usamos sem pensar duas vezes, e só por isso já merece uma estrela dourada.

A Cada Dia é a história de A, um@ ser incorpóre@ que acorda todos os dias num corpo diferente. As pessoas que ocupa nunca se repetem, e os corpos que ocupa têm sempre a sua idade (com 5 anos de existência ocupa pessoas de 5 anos, com 16 anos ocupa pessoas de 16). A tenta ao máximo manter igual e intacta a vida d@ ocupad@, viver os dias como el@ viveria.

Só que depois conhece Rhiannon. Rhiannon é a namorada de Justin, umas das pessoas que A ocupa durante o livro. E a relação de ambos capta-lhe o interesse, pela deconexão que parece haver. A deixa-se envolver, preocupando-se com ela, vendo uma centelha, uma promessa de algo mais, partilhando momentos com ela. Só que é impossível. A acordará noutro corpo no dia seguinte.

Acho que uma das coisas mais interessantes que o autor faz aqui é a representação do amor numa situação tão singular. A nunca teve um corpo seu, e por isso não se identifica com um género em específico, tal como a atracção que sente por outros não é definida por isso.

E então torna-se fascinante ver como se relaciona com a Rhiannon, porque para ela não é indiferente. Ela gosta de A pela pessoa que é, mas o corpo que usa condiciona naturalmente as suas interacções. A atracção física é importante; e a verdade é que é pelas aparências que nos relacionamos primariamente com os outros, pelas dimensões físicas, e isso dirige como nos vemos ou aos outros.

Outro ponto meritório de abordar é o modo como A e Rhiannon se relacionam. Por um lado, porque vejo os sentimentos de A no campo da paixão obsessiva, não necessariamente amor. Quero dizer, assim que se foca na Rhiannon, começa a meter os pés pelas mãos, a fazer um monte de asneiras, a deixar de respeitar os corpos e vidas que ocupa, a mudar-lhes radicalmente as circunstâncias. O respeito que tinha pelas pessoas que ocupa vai pelo cano abaixo assim que fica obececad@ com Rhiannon.

Por outro, este é um encontro de afinidades, de interesse mútuo, mas que tem dificuldades em sobreviver às circunstâncias. A não consegue compreender porque é que aquilo que pode oferecer não chega, e Rhiannon debate-se com ultrapassar a aparência física. Amb@s são muito jovens, despreparad@s para fazer cedências.

Algo mais que gostaria de fazer notar: o comportamento e moral e ético de A. É alguém que não existe em socidade, não se relaciona com o outro. E como é a nossa existência em sociedade que nos dá códigos morais e éticos a seguir, é quase surpreendente que A tenha algo semelhante a isso, uma tentativa de respeitar os que ocupa.

Contudo, é por essa mesma razão que não é de admirar que os abandone tão depressa pela Rhiannon. É claro que me frustrou imenso que começasse a ignorar os que ocupava, porque é uma violação de mentes e vontades, e por isso achei bastante adequado que as coisas começassem a correr mal para A quando ia demasiado longe.

A questão do como é que a situação de A funciona foi o que me cativou mais, mas também foi a que foi mais deixada por explorar. Há uma certa falta de foco da narrativa, ora se preocupa com a mecânica da coisa, ora com a relação A-Rhiannon, e acaba por lhe faltar um bocadinho assim para ambas serem completamente satisfatórias. Mas aproveito para louvar a escrita do David Levithan, que muitas vezes me fazia olhar para o ar a suspirar "ah, que coisa tão gira/bonita/fixe que eu acabei de ler".

O fim é um pouco desconcertante. É adequado, porque apresenta uma solução possível a uma situação impossível, mas também apresenta uma irresolução, um final demasiado aberto, quase escancarado, uma acção que não vemos concretizada, e sinto-me frustrada com essa noção. Especialmente porque é uma coisa que gostava de ter visto mais explorada na narrativa.

Por fim, termino com um comentário. É muito difícil desformatar a nossa cabeça daquilo que é visto como a norma na sociedade. É demasiado fácil conceber A como um rapaz heterossexual, só porque do outro lado da relação está uma rapariga heterossexual. É algo que passei o livro a tentar evitar activamente. É por isso que tentei evitar usar pronomes, artigos, e outros identificadores de género nesta opinião, usando o @ para a ambiguidade. A Cada Dia é um livro desafiante por essa razão, e desse modo é algo que recomendaria a qualquer pessoa. Vale a pena explorar aquilo que nos apresenta.

Título original: Every Day (2012)

Páginas: 288

Editora: Topseller (Grupo 20|20)

Tradução: Susana Serrão

2 comentários:

  1. Olá! :)
    Gostei muito a tua opinião sobre este livro, só tenho lido opiniões positivas sobre ele, contudo ainda o tenho na estante à espera para ser lido.
    Beijinhos.

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    1. Obrigada! É tão giro e desafiante, vale a pena ler. Espero que tenhas oportunidade de lhe pegar brevemente. ^_^ Boas leituras!

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