quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Winterspell, Claire Legrand


Opinião: Para ser completamente honesta, não me lembro de grande coisa da história de O Quebra-Nozes. (O conto/bailado/etc. em que Winterspell se inspira.) Tenho uma vaga ideia, muito vaga mesmo, de ver uma adaptação em desenho animado em miúda, mas também não me ficou na memória.

O que não foi impedimento de todo para apreciar Winterspell. Lendo o resumo da história original na Wikipedia, posso dizer que Winterspell segue o esqueleto da mesma, mas preenche-o à sua própria maneira, com o seu quê de encanto e singularidade, apresentando uma bela história que tive gosto em seguir, e que me fez ficar até altas horas da noite a virar páginas, porque eu simplesmente tinha de saber o que vinha a seguir.

Nesta história seguimos Clara Stole, filha do mayor de Nova Iorque, e que deve o seu posto a Concordia, uma organização criminosa com grande poder e alcance. Só que o pai de Clara tem-se fartado de estar ao dispor da Concordia, e isso tem emperigado a sua família. Clara tenta tudo o que pode para os manter a salvo, mas tudo parece ser insuficiente, e sente-se frustrada com a sua incapacidade.

Especialmente porque Clara visita frequentemente o seu padrinho Drosselmeyer, um relojoeiro e engenhocas muito capaz, e que está a ensinar Clara como se defender e como ser furtiva... Drosselmeyer sempre foi um pouco excêntrico, mas o cúmulo dá-se na noite de Natal, quando aparece com uma estátua misteriosa que sempre teve na sua oficina e que sempre fascinou Clara. Rapidamente o caos segue-o, destruindo a sala dos Stole e arrastando Clara numa aventura para um mundo paralelo, Cane, destruído e dominado por uma rainha das fadas maléfica, Anise.

E começa aqui uma grande viagem de descoberta para a Clara, a protagonista. Devo dizer que o percurso dela ao longo do livro foi a coisa que mais prazer me deu seguir. A Clara começa como um pequeno ratinho, temerosa, assustada, incapaz de agir mesmo quando tem as capacidades para tal. Chega mesmo a achar que é a culpada por tudo o que aconteceu à família.

O que não é uma perspectiva saudável, mas é realista para uma miúda na situação dela, e estranhamente adequado para a mensagem que a autora está a tentar passar: a Clara sempre teve o poder e as capacidades para se defender e marcar o seu lugar no mundo, mas precisava de acreditar neles e nela própria para se tornar a leoa poderosa que sempre foi. E só assim pode tomar as responsabilidades pelo que pode fazer, e resolver os problemas que a assolam.

O espaço onde Clara se move durante grande parte da narrativa é Cane, a terra encantada de onde é originário Nicholas, o rapaz-estátua que acordou na noite de Natal e que procura retomar o seu trono. Na sua ausência, Cane tornou-se um sítio escuro, destruído, tomado pelo medo. Anise tomou o trono, e no seu reinado as fadas tomaram o domínio de Cane, relegando os humanos para papéis secundários e subservientes.

Acho Cane um sítio muito interessante. Durante muitos anos, houve uma grande animosidade entre fadas e humanos, e Anise, um raro produto de uma relação fada-humano, sofreu com a guerra aberta entre espécies, o que acabou por retorcer a sua perspectiva; quando Anise toma o poder, é por vingança, não justiça, e aí começa um dos períodos mais negros deste mundo. É curioso ver que este é o inverso dum mundo dos contos de fadas, belo e idílico. Cane foi destruído pela guerra inter-espécies, e mesmo no fim da história tem ainda muito a percorrer.

Anise em si é uma personagem fascinante. Uma caixinha de contradições, bela e cruel, maléfica e vulnerável, lunática e lúcida... Clara passa algum tempo com ela, e a sua perspectiva, o seu gosto pela vida é contagiante, os seus momentos de vulnerabilidade mostram um novo lado dela, mas Anise está demasiado entrincheirada no ódio para voltar atrás, para se moderar, e parece impossível um Cane melhor com a sua presença.

No entanto, a convivência com ela é um marco importante no crescimento da Clara, com ela aprende algo sobre feminilidade e sexualidade, e é neste convívio que Clara ganha coragem e assertividade para se tornar a melhor versão de si que pode ser. Portanto, as cenas com Anise nunca foram um desperdício, e foi curioso ver como ela funciona.

O outro companheiro de aventuras de Clara é o príncipe Nicholas. Que é... complicado. De várias maneiras. É engraçado considerar o ponto de origem da sua relação, pois o Nicholas enquanto estátua conheceu a Clara por toda a sua vida, e ela sempre manteve um fascínio pela estátua que parecia viva... e depois o rapaz está ali em carne e osso, e é algo esmagador para a Clara. É uma convivência gira, porque faz a Clara confrontar-se com a sexualidade, e é algo que faz parte do crescimento dela, e há ali um clima, com a perspectiva de algo mais...

E depois o Nicholas vai e faz a coisa mais estúpida de sempre. *facepalm* Acho que o que ele (e o Drosselmeyer, já agora, que também faz das boas; e o pai dela, também... os homens da vida da Clara são uns desgraçados) representam é o potencial de aqueles que amamos nos desiludirem, fazerem coisas difíceis de aceitar - mas não deixamos de amar essas pessoas, por isso tudo o que podemos fazer é tentar encontrar no coração o caminho para perdoar, ou pelo menos para viver com isso... ou podemos virar costas e não olhar para trás.

A coisa que o Nicholas faz é imperdoável, e apereceu-me que fosse comido por um dragão (ah pois é, também os há por ali), mas creio que se arrepende genuinamente, lamenta a sua atitude, e quer fazer melhor, tomar outro caminho. É o incerto da vida, não é? Podemos perdoar as pessoas, e elas podem voltar a desiludir-nos, ou podem vir a fazer coisas grandiosas. Ainda bem que a decisão é da Clara e não minha.

Fiquei um pouco com a sensação que este livro bem podia ser uma duologia ou algo do género. Gostava de ter visto mais pormenores de Cane desenvolvidos, conhecer melhor a terra e as pessoas; gostava de ter conhecido melhor Anise, de termos visto mais da relação dela e da Clara, porque aquilo com mais espaço de antena era explosivo; gostava que o Nicholas tivesse sofrido mais um bocadinho, e sim, gostava que a relação dele com a Clara tivesse mais momentos para se desenvolver; e o clímax final pareceu-me curtinho, incipiente, mal preparado, gostava mesmo de ter visto uma batalha final grandiosa e brutal.

Contudo, fiquei satisfeita com o fim que as coisas tiveram. O processo de crescimento da Clara tem os seus frutos merecidos, e ela consegue dar a volta à vida duma bela maneira. Custa-me um bocadinho o lapso temporal final, mas compreendo porque acontece e só tenho pena de não poder ver o a seguir. É bom que seja glorioso.

Enfim, este é um retelling livre de O Quebra-Nozes, com umas pitadinhas de outros contos à mistura, mas consegue ser original, e com um lado surpreendentemente sombrio e sensual. Adorei, porque aprecio o caminho que a autora deu à Clara, e a narrativa que tentou contar, porque esta é uma história dentro de uma história, como o conto original, porque Cane é um sítio que eu gostava de visitar, e porque o livro tinha algo que me encantou e arrastou para a história sem mais delongas. Os melhores fazem-no sempre.

Páginas: 464

Editora: Simon & Schuster

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