quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Curtas: BD

Este foi o último livro que li, dos vários que comento neste post, e foi uma boa coisa que o tenha guardado para último, porque foi the best for last. Depois da maneira trapalhona como o Jacques Tardi narra as suas histórias, foi um colírio para os olhos poder ler esta história de Alison Bechdel, que é tudo menos trapalhona.

O livro é uma espécie de autobiografia, ou memória, em que a autora revê a relação com o pai. Creio que usa a história como uma forma de exorcizar os demónios que a vida familiar e a educação que teve trouxeram, e ao mesmo tempo reflectir exaustivamente na relação com o pai e no tipo de pessoa que o pai era, como se estivesse a tentar resolver um mistério. Pode não chegar a uma conclusão concreta, porque aqueles que partem não nos deixam todas as respostas, mas é uma viagem interessantíssima de acompanhar.

A narração é deliciosa. As palavras de Alison Bechdel escoam tão bem pelos olhos, foi tão fácil deixar-me enredar na história, nas sucessivas camadas que constrói em torno da sua infância e juventude. A história não é linear, saltamos e retornamos a várias alturas da sua vida, descascando aos poucos as várias camadas, descobrindo mais pormenores e mais perspectivas únicas da autora sobre os eventos, muitos deles reconstruídos mais tarde, pois aquilo que acreditava em criança não encaixava exactamente com o que aconteceu realmente.

Gosto muito de como faz comparações, e liga eventos da sua vida uns aos outros, encontrando um elo único entre eles. Apreciei muito as comparações literárias, pois a relação com os pais foi bastante marcada pela literatura, e de certo modo, a autora sabe mais relacionar-se com eles pelos livros que liam e partilhavam, do que na partilha de afectos, algo que numa família tão fria e desligada não era comum. De certo modo, ela sabe relacionar-se melhor com os pais através da ficção, como se fossem personagens, e este livro é mais um aspecto disso.

No meio disto tudo a história ainda tem um certo grau de despertar sexual, em que a autora "sai do armário" para os pais a certa altura da sua vida... e quatro meses depois, o pai morre, num acidente que a autora suspeita que foi provocado pelo próprio, em jeito de suicídio. Acaba por ser fascinante acompanhar a sua reflexão acerca da sua sexualidade, de como se sentiu toda a vida, e quanto da repressão da sua identidade sexual está relacionada com a vida familiar e com a atitude sufocante, dominadora e até violenta que o pai tinha.

De certo modo, a autora faz um mea culpa, achando que a sua revelação precipitou os acontecimentos, ainda que não directamente, e o livro é também uma forma de lidar com isso, e de tentar encontrar uma ligação ao pai, um homem tão afastado emocionalmente, e de encontrar respostas para esse acontecimento trágico. No meio disto tudo, a personalidade de Bruce Bechdel é esculpida perante os nossos olhos, muitas das suas acções escrutinadas na página, mas quem ele era continua a ser um mistério que não é possível resolver.

A arte é simples, mas encaixa bem com a narração, e melhor, é tão interessante de acompanhar quando ela parece estar a falar dum assunto completamente diferente, mas que no fim se relaciona com o que estamos a ver. Há pequenos apontamentos muito interessantes, como as citações de livros, o uso do dicionário, ou o presença constante da cultura popular e dos eventos da época.

Li há dois anos um volume que continha duas histórias autoradas por Jacques Tardi, a terceira de Adèle Blanc-Séc, O Sábio Louco, e uma aparentemente não relacionada, O Demónio dos Gelos. Ao pesquisar os volumes de Adèle Blanc-Séc recentemente publicados em Portugal pela Asa, cheguei à conclusão que esse livro tem o conteúdo igual ao volume 2 que faz conjunto com estes dois que vou comentar.

Continuo a questionar o terem escolhido aquele livro para apresentar a personagem, porque fazia mais sentido começarem pelas histórias do volume 1, Adèle e o Monstro e O Demónio da Torre Eiffel. O Demónio dos Gelos tem uma ligação directa com a quarta história da Adèle, Múmias Loucas, presente no terceiro volume (a outra história que contém é O Segredo da Salamandra, a quinta história da personagem). Além disso, a terceira história pega em personagens das histórias anteriores, por isso não admira que tenha ficado confusa na altura.

Acho o Jacques Tardi um péssimo argumentista, mais valia que outra pessoa fizesse os textos. Primeiro porque temos horrores como vinhetas a fio em que o texto/balão ocupa mais de metade da vinheta (às vezes temos uma página cheia deste tipo de vinhetas); depois, porque é um péssimo narrador. Mete dez personagens diferentes à procura da mesma coisa na história, todos muito iguais, sem características distintivas, atira-nos com os nomes deles e depois espera que consigamos acompanhar a narrativa e as motivações desta gente toda.

Faz ocasionalmente uns info-dumps do demo no fim da história, para explicar o que se esteve a passar, quem era quem e o que queriam. (O que não era preciso se a história estivesse melhor construída, mas pronto.) Nunca percebemos porque é que a Adèle se mete neste imbróglio, graças à tentativa do autor de fazer mistério sobre a personagem. (E uma menção fugaz a ela ser escritora não chega, lamento.) E enfim, toda a história é muito confusa, desnecessariamente, diria eu. Compreendo que o autor esteja a emular e parodiar um certo tipo de história que não primava pelo rigor narrativo, mas creio que haverá quem consiga fazê-lo sem tornar a própria história num desastre.

Os detalhes da narrativa são por vezes interessantes. Gosto muito da ideia de um início de século XX, uma era de divulgação e conhecimento científico, ser invadido por uma série de acontecimentos sobrenaturais, como um petrodáctilo pterodáctilo (piada interna, um dos personagens passa a vida a trocar o nome ao bicho), ou deuses sumérios que exigem sacrifícios, ou múmias que se erguem das tumbas e fogem para o Egipto, ou processos criogénicos e soros milagrosos que trazem personagens de volta à vida. A Adèle é uma personagem com potencial, só é pena que se afogue numa narrativa tão medíocre.

Só se salva a arte. À parte os personagens serem todos parecidos, os cenários são sempre detalhados, fantásticos de observar... é o forte do autor, e devia cingir-se a ele. Também devia pesquisar melhor a sua História. Há uma referência ao Titanic, cheia de buracos, e mesmo argumentando que isto é história alternativa ou um mundo paralelo, se não há razão ou explicação directa para mudar a data e o local de embarque, e a data da tragédia, não se percebe porque é que ele os mudou. O Titanic não partiu de Liverpool dia 8 de Abril, nem chocou com o iceberg dia 20 (partiu dia 10 de Southampton, chocou dia 14 e afundou-se já no dia 15)... basicamente só acertou no ano (1912). A ideia de envolver o Titanic na história é boa, e a explicação que o autor dá para o afundamento é interessante, mas esta invenção de datas e locais não faz sentido, especialmente numa narrativa que tem tantos saltos temporais e que nem precisa de mexer nas datas para fazer caber os acontecimentos.

Pequenos Prazeres, Pequenos Prazeres 2, Arthur de Pins, Maïa Mazaurette
Pronto, com estes dois livros (que recolhem o equivalente a 4 volumes em francês), diverti-me imenso. Retratam a vida social e sexual dum jovem, Arthur, e as suas peripécias, sempre à procura de mais uma moça para se enrolar, interessando-se e desinteressando-se pelas jovens que lhe passam á frente tão rapidamente como quem muda de camisa.

Os gags são muito divertidos, com um tom decididamente adulto, e com uma visão singular das relações entre homens e mulheres hoje em dia. Adorei quando entra em cena a Clara, que ainda é mais doida que o Arthur, e por isso apreciei quando o início do segundo livro (equivale ao terceiro em francês) se foca mais nas aventuras e desventuras dela.

Amei a segunda parte do segundo livro (quarto volume em francês), que é sobre dois amigos do Arthur e da Clara casarem-se, e como isso os leva a fazer uma aposta... e é tão hilariante ambos tentarem fazer o outro perder a aposta. Ainda melhor, é o caos que eles lançam no casamento em si... é de ir às lágrimas.

Os gags normalmente ocupam duas páginas (ocasionalmente mais, ou menos), e o desenho e o layout das páginas é simples, mas serve muito bem a narrativa. Gosto muito do uso de cores, e de como desenha os cenários e os personagens - que não têm nariz, mas o autor faz resultar o "boneco".

Aprecio a ideia da Contraponto, de juntar dois volumes originais num para a edição portuguesa, porque os livros são devoráveis e saberiam a pouco. Só é pena que não o autor não tenha publicado mais nada com estes personagens, porque gostaria de continuar a ler as suas aventuras e desventuras.

2 comentários:

  1. eu adorei os Pequenos Prazeres adorava a Contraponto por isso! Lançava algo diferente fresco..mas não gostei do Fun Home :X achei uma seca. os outros não conheço ;)

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    1. A Contraponto tinha umas escolhas fantásticas, o azar deles foi serem uma chancela da Bertrand... entre a falta de divulgação e o não continuarem certas séries, como parece ser hábito da editora, esta chancela morreu. :/

      Os da Adèle não valem propriamente a pena, a maneira como conta a história é desnecessariamente confusa, e o resultado final não é muito bonito. xD Mas ainda gostava de ver o filme que fizeram como adaptação dos livros... :)

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